domingo, 27 de setembro de 2009 | Autor:

Entrevista concedida ao jornalista António Mateus, no Palácio Pestana, em Lisboa, no ano de 2009, transcrita por Alexandre Montagna e simultaneamente por Renata Coura e Maicon Casagrande, com a colaboração de Caio Martareli,
Priscila Ramos, Raffa Loffredo, Taline Mendes, Rômulo 
Justa e Alessandra Filippini. Revisões sucessivas feitas por Fernanda Neis, Alessandra Roldan, DeRose e Camacho.

 

Depois de transcrito, o texto abaixo foi revisado e convertido de linguagem coloquial em linguagem escrita. Trechos foram suprimidos ou inseridos em benefício de uma melhor redação.

 

ENTREVISTA

 

A sua cultura promove um indivíduo mais lúcido, mais consciente, mais interventivo na sociedade. É isso?  

 

 

A proposta é essa. A proposta é que através de um conjunto de técnicas e um conjunto de conceitos nós possamos levar a pessoa comum a um estado de consciência expandida. Se isso vai ser obtido ou não, vai depender de uma constelação de fatores. Entre eles, a própria genética do indivíduo. Quanto à parte controlável, vai depender da dedicação, do investimento de tempo na prática dessa filosofia e também do ambiente onde a pessoa vive. Porque vai depender muito da bagagem cultural que ela traz, da profissão que ela exerce, da idade com a qual começou.

É possível esculpir um indivíduo diferente, mais interventivo na sociedade?

Cada indivíduo é uma realidade distinta. As próprias técnicas, por exemplo, de oxigenação cerebral, vão reagir diferentemente de um indivíduo para o outro.

Mas o senhor tem uma intenção, tem um destino que quer cumprir no esculpir desse indivíduo?

Sim. A meta que nós queremos alcançar é conceder a essa pessoa um estado de hiperconsciência, um estado de megalucidez. Que, na verdade, é a direção na qual a humanidade está caminhando.

Quando as sociedades dos nossos dias não têm um perfil nem de indivíduo nem de sociedade em si, a sua cultura pode ser a proposta que falta. Esse indivíduo, obviamente diferente, mais lúcido, mais consciente, que impacto real ele tem na sociedade? Em que ele pode fazer a diferença?

Quando o indivíduo tem mais lucidez, a primeira coisa que ocorre é que ele vai exercer melhor o seu trabalho, a sua posição na família, o seu engajamento em qualquer ideal, seja ele político, humanitário, filantrópico, artístico, seja lá qual for. E, além do mais, ele se sente integrado. Quando o indivíduo ainda não tem uma consciência plena, ele acha que o mundo se divide entre “eu e os outros”. No momento em que a consciência se expande, ele percebe que não existe essa coisa de “eu e os outros”. Somos todos uma só coisa, estamos todos interligados, não apenas dentro da espécie humana, mas entre todas as espécies e com o próprio planeta, com o próprio cosmos. E esse estado de consciência expandida é alcançável. Mas, geralmente, quando uma pessoa menciona a sua pretensão, a sua intenção de conseguir tal estado de consciência, um outro que não imagine o que é isso, que não tenha lido a respeito, que não tenha estudado, que não tenha se esclarecido, pode supor um ideal inalcançável, pode supor uma fantasia. Acontece que muita gente já logrou esse estado de consciência.

Esse estado de hiperconsciência, de megalucidez, traduz-se em quê no dia-a-dia?

No dia-a-dia, traduz-se em uma participação objetiva, que nós chamamos de ação efetiva. Porque muita gente tem iniciativas, mas poucas têm acabativas. Então, uma das coisas que uma consciência maior nos concede, é perceber que não adianta apenas o discurso, não basta a intenção, é preciso levar a cabo. É necessário ter a iniciativa, a acabativa, o resultado final, para a vida deste indivíduo, para a sua família, para os seus amigos, para os seus desamigos, para toda a sociedade, para a responsabilidade social, para responsabilidade ambiental, ou seja, ele vai expandido o seu campo de atuação, ele deixa de ser um indigente, ele deixa de ser um indivíduo que não é ouvido, que não tem voz, nem voto. Ele passa a ser uma pessoa que atua e que modifica o mundo em que vive. E como essa pessoa, em geral, é uma pessoa que tem nobres ideais, ao modificar o mundo em que vive, modifica-o para melhor.

Como é que a sua cultura faz isso sobre o indivíduo? De que instrumentos, de que ferramentas dispõe para fazer isso?

A Nossa Cultura! Eu chamo de “Nossa Cultura” porque é um conjunto de conceitos, é uma filosofia, é um sistema de vida. Essa Nossa Filosofia, essa Nossa Cultura, propõe atuar sobre o indivíduo através de uma reeducação comportamental progressiva e espontânea. Não somos a favor de doutrinação, portanto, doutrinação está excluída. Não somos também a favor de repressão. Sem doutrinação e sem repressão, o melhor caminho é o do exemplo. É a convivência. É o que nós chamamos de egrégora. É conviver com o poder gregário, de um grupo que já está dedicado a esses ideais. E, a partir daí, os conceitos são incorporados com muito mais facilidade. Quanto às técnicas, aí já é uma questão de dedicação individual, de praticar, de executar, de treinar.

Pode-se comparar esse tipo de intervenção como quem afina uma orquestra? Vamos reunir os violinos, as flautas, e pô-los todos a prestarem um comportamento numa mesma direção?

Certamente que é. Nós geramos uma sincronia entre todos os elementos que nos constituem como um ser humano. Não apenas corpo e mente, mas corpo físico, emocional, mental, intuicional, enfim, todos os elementos que vão sinergizar-se, como você muito bem exemplificou, como uma orquestra. Depois, nós vamos extrapolar para além do indivíduo. Não queremos que o nosso praticante se restrinja a atuar dentro do seu pequeno mundinho, do seu universo pessoal. Extrapolando, essa orquestra passa a ser também a orquestra da família, a orquestra do trabalho que ele executa, a orquestra da sua arte, de todos os elementos, pessoas, indivíduos, circunstâncias, daquele ambiente. À medida que vai ampliando seu campo de atuação, você chega a considerar que o mundo é muito pequeno, porque alcança as pessoas, através de veículos diversos. Outrora, era através da escrita, através de livros, antes deles, pelos pergaminhos. Hoje conseguimos atingir as pessoas por veículos eletrônicos, conseguimos estar, num momento, escrevendo em nosso computador e ao mesmo tempo sendo lidos, sendo acessados por pessoas em todo o planeta.

Carl Sagan defende, pelo oposto, um sujeito que é contaminado pela sociedade, que é poluído pela sociedade. A Sua Cultura promove o oposto. Promove um indivíduo ativo, consciente, interventivo.

Eu concordo com ele. A sociedade contamina o indivíduo. Mas o indivíduo tem o poder de contaminar a sociedade. Isso parte da proposta de você realmente perceber que a sociedade tem esse poder, que todo o ambiente cultural em que uma pessoa vive, tem poder sobre nós. De fato, somos produto, nós somos frutos do ambiente, da cultura em que fomos educados, na qual vivemos. Se tivermos consciência disso, desse poder do ambiente de nos contaminar, e nos recusarmos a aceitar passivamente essa contaminação, então nós inverteremos o processo e passaremos a influenciar a sociedade, a cultura e o mundo em que vivemos.

Essa contracorrente do sujeito ativo, e não passivo, entronca naquilo que referi ao princípio, que é a perspectiva do indivíduo mais lúcido, mais consciente. Essa lucidez também tem a ver com o indivíduo aperceber-se de como a influência exterior lhe pode ser danosa, é isso?

Sim. Mas é preciso lembrarmo-nos de que esta proposta, embora revolucionária em termos comportamentais, não é agressiva, no mau sentido. Não é violenta. Ou seja, nós não estamos indo contra o que já está estabelecido, nós não queremos que as pessoas simplesmente mudem e adotem a Nossa Filosofia. A proposta é: quem já estiver pensando dessa forma, não se sinta um avis rara. Que esses indivíduos sintam que há outros que pensam da mesma forma. E, então, nós podemos nos reunir, comungar um mesmo ideal e compartilhar as ideias, os conceitos, as práticas, a maneira de viver, a maneira de constituir amizades, constituir relações afetivas, de uma forma que nós consideramos mais civilizada, que é muito mais amorosa, muito mais tolerante.

Certa vez uma jovem aluna do nosso Método nos escreveu uma linda cartinha que terminava dizendo: “Sempre me senti o coringa do baralho e agora encontrei um baralho em que todas as cartas são coringas.”

Porque Vossa Cultura não traz só uma proposta interior, do indivíduo, é também na forma como ele se relaciona com os seres humanos à sua volta, com o mundo físico à sua volta. Há uma nova estética e uma nova ética?

Sem dúvida, porque o conceito de um interior pressupõe que haja uma dicotomia entre interior e exterior. E a Nossa Cultura não entende o indivíduo, nem o mundo, como uma coisa separada. Um corpo e alma, por exemplo. Um antagonismo entre o espiritual e o natural, o físico, o corporal. Então, nós entendemos que interior e exterior são uma coisa só. Que estando integrados, nós conseguimos realizar muito mais e muito melhor, muito mais bem feito o nosso trabalho. De nada adianta que consigamos proporcionar uma evolução pessoal a um indivíduo se isso não for se reverberar na sociedade, no mundo, na humanidade e até no meio ambiente. Um mais elevado nível de consciência forçosamente desencadeia uma nova estética e uma nova ética em relação aos valores que hoje estão vigentes. Por outro lado, nada do que proclamamos é novo.

Quando os governos dos nossos dias pouco ou nada se preocupam com o perfil de indivíduo a definir, com o perfil de sociedade a alcançar, a não ser no plano puramente material, do acerto de contas financeiras, é preciso haver um novo olhar sobre a qualidade do indivíduo. E a sua proposta de Cultura responde exatamente a isso. É um sujeito mais lúcido, mais ativo, e que sabe para onde ele quer caminhar?

Exatamente. E sempre sob a égide da tolerância. Porque, se não for assim, nós estamos correndo o risco de inventar uma religião nova, o que não é absolutamente a intenção. A nossa é uma proposta educacional, uma proposta cultural, de levar o indivíduo a um patamar mais elevado de civilidade, de cultura, de educação, de senso artístico, de sensibilidade e, como você disse antes, de ética e de etiqueta também. A etiqueta é uma pequena ética. Quer dizer, temos a grande ética, e nós temos aquela ética, aquela etiqueta, aplicada ao dia-a-dia, no relacionamento dentro de uma sociedade específica, na qual nós precisamos nos adaptar. Porque quando expomos uma proposta abrangente como esta, temos de considerar que existe uma cultura cristã, mas existe uma cultura hindu, uma cultura judaica, uma cultura islâmica e nós não podemos sugerir uma proposta que se adapte apenas a uma dessas culturas.

Isso muda completamente a dinâmica do mundo à nossa volta. Que possibilidades é que se abrem?

As possibilidades são múltiplas e bem abrangentes. No entanto, a realização é sempre lenta, porque a mudança de paradigmas é muito difícil para o ser humano. Nossos circuitos neurológicos foram projetados de uma forma que, a partir do momento em que aprendemos um determinado conceito, um determinado código de procedimento, não conseguimos mudar. É muito difícil mudar. Então, quando transmitimos este ensinamento, devemos nos lembrar de que é um ensinamento basicamente para um público jovem, adulto jovem. Adulto jovem, é aquele que está na ativa, é aquele que está na dinâmica empresarial, política, artística, enfim, em qualquer área. Essa pessoa tem condições ainda de processar uma transmutação na sua maneira de ser. Tem condições de incorporar uma nova práxis. E quem o tiver, no meu entender, é um adulto jovem.

Martin Luther King legou-nos um sonho que ele tinha – “I have a dream”. O John Lennon pintou com música – “Imagine”. Nelson Mandela trocou a sua liberdade por esse sonho. O visionário DeRose, como é que configura esse sonho?

Eu não diria visionário. Porque o nosso trabalho é muito terra-a-terra, é muito objetivo, vai diretamente ao indivíduo no mundo em que ele vive. Ou seja, sem subjetividades, sem teorizações, sem suposições. Ideais, sim. Mas dentro de um cuidado muito grande para que esses ideais não se tornem fanáticos. O fanatismo tem que ser evitado. Mas a intenção é justamente conduzir estes conceitos a que o indivíduo possa aplicá-los de fato. Que não seja apenas uma linda proposta, um lindo discurso, mas que ele realmente chegue lá na sua empresa e faça isso funcionar, modificando a estrutura do seu negócio, modificando a administração da empresa, tornando cada funcionário, cada colaborador seu um indivíduo que tem um valor, que tem um potencial, que tem uma criatividade e que é um ser humano. Não no sentido obsoleto de entender o funcionário e o empresário como forças oponentes num cabo de guerra, mas colocando todos a tracionar na mesma direção, direção essa que é o progresso individual e, por consequência, o progresso da sociedade.

Quando o senhor imagina, vamos pegar no “Imagine” do John Lennon, quando o senhor sonha um futuro, sonha o quê? Vê o que no fim dessa viagem?

No “Imagine” eu vejo um credo. O que ele propõe é realmente revolucionário. Até me causa espécie que não tenha havido reações mais virulentas contra aquelas propostas, porque Lennon exorta o indivíduo a superar as limitações de pátria, as limitações de fronteiras. Isso obviamente não agrada nada à maior parte da população, dos governantes, dos poderes constituídos. Querer que todos sejamos um só povo, uma única humanidade. E ao propor “no religion too”! Era de se esperar que todas as religiões censurassem a ousadia. Mas não aconteceu isso. A música é linda e o que nós vemos é que a sua letra é aceita por todos, inclusive pelos governantes, pelos poderes constituídos, pelas religiões em geral. As pessoas gostaram da mensagem de Imagine porque Lennon soube como expressá-la com arte e estética.

Mas o senhor quando mobiliza os seus instrutores, a sua família, a sua egrégora DeRose, está a configurar um futuro. Onde é o horizonte que configura para esta sua passagem pela vida?

Eu diviso, a curto prazo, pessoas mais felizes e mais saudáveis, com uma qualidade de vida melhor. Porque isto é o que as nossas técnicas proporcionam. Em primeiro lugar, maior qualidade de vida. A médio prazo, eu vejo prosperidade. A longo prazo, autoconhecimento.

Uma pessoa que tem melhor qualidade de vida, que tem mais tolerância, que sabe lidar com o ser humano, que sabe lidar com seus superiores hierárquicos ou com seus comandados, sabe lidar com seus clientes, com seus fornecedores, sabe lidar com seus amigos e com a sua família, com as suas relações afetivas, essa pessoa está no controle. Converte-se em um líder. Um líder sereno, carismático dentro do seu respectivo ambiente. Então, a médio prazo, isso proporciona estabilidade. Estabilidade na relação afetiva, estabilidade na família, estabilidade no trabalho. A conseqüência é prosperidade.

Eu já estou nessa caminhada há meio século. Durante estes cinquenta anos de profissão, tenho observado que de fato as pessoas que seguem a Nossa Cultura, a médio prazo, começam a conquistar a estabilidade, a prosperidade, mais felicidade, maior expectativa de vida.

O aumento da expectativa de vida é conferido, inclusive, pelos bons hábitos que são propostos. Nossa Filosofia ensina a não utilizar drogas, a não utilizar álcool, não utilizar fumo. E buscar hábitos saudáveis. Isto, muito longe de tornar a vida sem graça, torna-a muito mais interessante, porque aumentando a sua lucidez, se você não está sob influência de droga alguma. Então, se você não está sob o jugo de nenhuma dessas substâncias tóxicas, que interferem com a consciência, inquestionavelmente, desfruta de mais felicidade, mais lucidez, percebe o mundo de uma outra maneira e, consequentemente, o mundo e a vida ficam muito mais divertidos. Essa pessoa fica mais feliz de fato. E, a longo prazo, a proposta é aquele estado de consciência expandida que nos conduza ao autoconhecimento.

Esse é o objetivo a nível individual?

No âmbito individual, o autoconhecimento. Se um dia, a humanidade conseguir chegar a esse estado, nós vamos ter uma humanidade muito diferente da que temos atualmente, porque hoje nós partimos para soluções drásticas. Nós sempre observamos que, em um mesmo momento, várias nações estão em conflitos armados. Se conseguíssemos que, senão toda a humanidade, pelo menos aqueles que têm o poder de decisão, aqueles que podem criar leis, aqueles que podem declarar guerras, se todos esses estivessem em um estado de consciência melhor, mais expandido, nós teríamos um mundo muito mais harmonioso. Hoje, nós vemos que, muitas vezes, em muitos países, o governante não quer o bem-estar e a evolução do povo. Até porque, se o povo ficar mais lúcido, é capaz de tirá-lo do poder. Considerando o nosso ideal, nós [a humanidade] não estamos em um momento bom. E a demonstração disso são, justamente, esses conflitos que observamos em várias regiões do globo. Mas se, passo a passo, gradualmente, sem nenhuma intenção de converter pessoa alguma, aos poucos, isso der certo, no sentido de uma expansão para a população em geral, eu acredito que realmente nós vamos ter, num futuro, um mundo muito diferente.

O século XXI já está diferente se nós compararmos a qualidade de vida e o nível de consciência, não apenas de cultura, não apenas de informação, não apenas de ilustração, mas o nível de consciência mesmo da maior parte da população comparada com 200 anos, 500 anos atrás, 800 anos atrás, nós estamos numa curva ascendente.

O senhor regride aos alicerces do nosso existir no (livro) “Eu me lembro”, como quem ganha balanço em recuo para um salto. Esse salto leva-nos para onde?

O livro “Eu me lembro” é um conto ambientado num local, num período, numa civilização em que, até onde nos consta, pela história, pela arqueologia, habitava um povo que vivia em harmonia. A população tinha qualidade de vida, o cidadão era respeitado. Não se encontraram construções faraônicas para os monarcas, nem para o clero, mas encontraram-se casas muito confortáveis para a população. Estamos nos referindo a um período proto-histórico que está situado imediatamente antes do surgimento dos registros históricos. Os historiadores recorreram, muitas vezes à arqueologia, para poder montar um pouco da história daquele povo.

Estamos falando de 5000 anos atrás, 3000 antes de Cristo. E nessa época, nessa civilização, chamada Civilização do Vale do Indo, já havia cidades extremamente bem urbanizadas, saneadas, as casas do povo eram prédios com dois andares, e mais, com átrio para ventilação interna, com o banheiro dentro da casa, com água corrente. Mas isto, 3000 antes de Cristo, é qualquer coisa de inacreditável. Os próprios arqueólogos quando encontraram suas ruínas, recearam comunicar a descoberta às academias de ciências, receando ser tidos por imprecisos.

Então, as descobertas foram sendo comunicadas gradualmente. Convidaram outros arqueólogos, de diversos países, a que fossem lá constatar. Porque era realmente uma civilização excepcional para a época e até comparada com algumas regiões do nosso planeta atualmente. Então, imagine que, aquela ambientação na qual essa história, esse conto, essa ficção (o livro Eu me lembro…), se baseia, é a de um povo feliz, é de um povo saudável, estável, próspero dentro dos limites do período histórico. E recuando para essas origens, diríamos, muito próximo das origens da civilização mesma, nós aprendemos alguma coisa com eles. Algo que foi perdido depois.

As sociedades primitivas, não-guerreiras, todas tenderam ao matriarcalismo (como é o caso da civilização do Vale do Indo) e as sociedades patriarcais, todas foram guerreiras. Com a chegada dos arianos em 1500 a.C., ocorreu a consequente introdução do sistema patriarcal naquela região. Desde o passado remoto, o sistema patriarcal tem vivido da guerra.

Por outro lado, a sociedade matriarcal, privilegia a mãe, o carinho, o ventre, o seio… é uma outra forma de ver o mundo, uma outra proposta para administrar a família e o próprio Estado. Sem guerras, esse povo obviamente consegue dedicar seu tempo e os seus recursos econômicos à arte, à cultura, à ciência e à filosofia. Tudo isso, sem repressão, porque a sociedade matriarcal, em geral, não é repressora. Então, sem repressão, imagine até onde puderam se expandir os impulsos artísticos e culturais daquele povo.

No “Eu me lembro”, o senhor recua a um passado onírico e depois transporta-nos por uma realidade mais palpável, onde aspectos tangíveis, como os instrumentos de escrita, a própria linguagem, já são mensuráveis. É quase como se fosse uma visão antropológica. Como o senhor não dá um ponto sem nó, quer nos levar para onde com esse transporte?

Não nos esqueçamos de que toda a descrição é uma fantasia, porque nesse livro, “Eu me lembro”, eu discorro sobre memórias de um passado, mas esse passado não é nada espiritual, é uma história. Então, levando o leitor até aquela realidade cultural, até aquela civilização, até aquela maneira de ser, eu estou sugerindo uma reflexão do indivíduo a respeito da validade daquela forma de se relacionar com os filhos, com os pais, com os amigos, com os inimigos, com a pessoa amada. Então, talvez o conteúdo do livro possa fazer uma contribuição ao aprimoramento individual. Agora, onde está a fronteira entre a fantasia, a ficção, o mito e a realidade, isso eu deixo para que o leitor descubra.

No entanto, a segunda parte do livro, já tem um cariz quase antropológico, já não é uma ficção pura?

A ficção à qual eu me refiro é o conto em si. Eu utilizei o máximo possível de elementos palpáveis, de fatos reais, de dados históricos para construir o alicerce do conto. Eu vejo a possibilidade de que a pessoa, primeiro, seja conquistada pelo coração, por isso o início do livro é muito doce, muito meigo, depois ele é romântico, e finalmente ele é, digamos, mais filosófico. Na parte final, ele perde um pouco da doçura, porquanto na idade madura tornamo-nos mais realistas. É a história de uma pessoa que cresce. Primeiro é criança, então tem uma visão mais imaginativa do mundo. Depois torna-se adulto. Naquela época o homem tornava-se adulto aos 15 anos de idade, era a idade em que já estava apto a reproduzir, constituir família. E envelhecia cedo, já era um senhor aos 30 anos de idade. Nesse momento, ele já vê o mundo de uma maneira mais consistente, mais cuidadosa, mais prudente. Eu tento transmitir no texto um pouco da nossa filosofia, não muito, apenas um pouco, porque o livro é pequeno. É um dos menores livros que eu escrevi.

Pode ser menor em tamanho, mas eu senti que era o elemento mais instigante, porque há várias leituras a fazer por trás.

Sim, inclusive uma leitura revolucionária, no bom sentido. Uma leitura que subverte os maus hábitos e a estrutura de parca civilidade do nosso mundo. Não na intenção de demolir nada, mas no sentido de sugerir que o leitor pare e pense: “Afinal, essa proposta parece interessante! Quem sabe, nós podemos adotá-la? Vamos experimentar, vamos usar isso na família, vamos aplicar esses procedimentos com os nossos amigos.”

Quando o senhor, por exemplo, promove, em um dos seus pensamentos, defender a liberdade como primeiro pilar da nossa existência e, quando ela se choca com a disciplina, primar sempre pela liberdade.

Esse pensamento é bem categórico. Ele proclama que a liberdade é o nosso bem mais precioso.

No entanto, pela oposição, nós precisamos ter uma disciplina interior e existencial para defender os valores. Onde é que as duas fronteiras se cruzam?

A continuação desse pensamento diz que se a disciplina violentar a liberdade, opte pela liberdade. Como é que nós vamos temperar essas duas forças? A disciplina é fundamental, mas, se a disciplina de um grupo especifico, qualquer grupo que seja, um grupo político, um grupo de esporte, um clube de futebol, não importa o quê, se este grupo tem normas e tais normas, tal disciplina me violenta, eu devo priorizar a liberdade. Fazendo o quê? Brigando, indo contra? Não! Afastando-me. Obviamente, tal grupo não serve para mim. Esta empresa, este colégio, esta faculdade, este clube, não serve, porque suas normas me violentam. Então, eu saio procurando preservar as amizades e vou procurar a minha turma. Se nós fizermos isso, ao invés de querer bater de frente, conseguiremos desfrutar uma vida muito melhor. E é claro que eu respeito quem pensa o contrário. Há quem tenha a opinião de que, para defender um ponto de vista, nós precisamos brigar, gritar, insultar, agredir, fazer escândalo. É uma questão de temperamento, de educação, de caráter. Está bem. Mas esse é um outro grupo. Sempre que possível, procuro ficar distante dele.

O senhor, por exemplo, defende a disciplina, o rigor, a farda, o vestir da camisola [no Brasil, diz-se vestir a camiseta], e esse coletivo pressupõe uma secundarização do indivíduo. É correto isso?

Não, não é. Nosso discurso pressupõe que tudo que você disse é válido, desde que não violente o indivíduo. Não pode violentar a liberdade dele e tem que estar bem assentado sobre a tolerância. Se nós conseguirmos esse amálgama, que é alquímico, encontramos ali o equilíbrio do fio da navalha. Porque realmente é um equilíbrio sobre um caminho muito estreito. Uma brisa faz com que você se incline para um lado, para o extremismo da intolerância, da disciplina que tem que ser cumprida a todo custo, ou para o outro lado, da tolerância excessiva, da complacência com a falha.

Sua Cultura trabalha, por outro lado, sobre os extremos. Nós devemos trabalhar sobre aquilo que são as nossas dificuldades, os pontos menos bons, ou os pontos que são mais positivos?

Não sei se eu colocaria dessa forma, porque colocando assim nós, de uma certa forma, cristianizamos um pouco esse conceito, exacerbando a noção do bem e do mal. E a nossa proposta é a de que tenhamos sempre a consciência de que bem e mal são sempre relativos. “Você está fazendo errado.” Mas errado em relação a quê? Com relação a que momento? Richelieu disse, certa vez, que ser ou não ser um traidor é uma questão de datas. É um pouco isso, a respeito do certo e do errado. Em que sociedade, em que religião isto é certo ou isto é errado? Você entra numa igreja católica e tira o chapéu em sinal de respeito. Aí você entra numa sinagoga e coloca-o, em sinal de respeito. Eu me lembro de que uma vez nós fomos visitar um templo sikh, na Índia, e eles pediram para cobrirmos a cabeça. Até a câmera que eles mesmos usavam para gravar o ritual, era coberta em sinal de respeito, com um tecido branco. Conclui-se, portanto, que tudo é convenção. E nós temos que estar conscientes disso cada vez que nos deixarmos conduzir, dentro da tradição que recebemos, que é a do bem e do mal. “Este é o seu lado mau”. “Isto foi um erro cometido”. Talvez, observando sob outra ótica, não seja bem assim. É melhor considerar: isto talvez não tenha sido conveniente, neste momento, ou neste grupo. Não que seja mau, ou que seja errado. Outro sútra diz que mal é o nome que se dá à semente do bem. Porque tudo o que você passou na vida de “mal” ou de “mau”, você pode observar que, em seguida (ou já, ou logo depois), produziu um fruto muito bom.

Realizando a lucidez do cidadão consciente, o indivíduo lúcido, na viagem para o estado de hiperlucidez, esse sujeito tem que ter uma visão para onde caminha. Como quem vai fazer uma corrida de fundo, ele tem que saber, para se automotivar, para onde ele caminha. A Sua Cultura, como é que o impregna desse sentido objetivo?

Nós procuramos ver como se fosse uma viagem linda que você está fazendo de trem e que sabe que o percurso conduz a um determinado destino. Mas você olha a bela paisagem do lado de fora, conversa com um amigo do lado de dentro, vai até ao vagão restaurante, delicia-se com uma comidinha, recosta, dorme um pouco. Você usufrui. Você desfruta do prazer da viagem. E, assim, chega mais rápido. E se o indivíduo ficar só pensando: “eu tenho que chegar; o meu destino, o meu destino, o meu destino”. A viagem fica desagradável e parece mais longa. Com relação à nossa meta, a recomendação é: não se preocupe com a meta. Vamos desfrutar a comunidade, as pessoas. As pessoas que, em geral, seguem este sistema, são pessoas interessantes, são pessoas bonitas, por dentro e por fora, são pessoas educadas, sensíveis, que têm assunto para conversar com qualquer interlocutor.

No entanto, quando nós vemos, por exemplo, uma sociedade conservadora que, vamos imaginar, por exemplo, defende que a mulher deve ter um papel na sociedade, que deve viver para o marido, para os filhos, para as aparências, o estado de lucidez permite a ela derrubar essa fronteira. A sociedade conservadora não hostiliza imediatamente essa lucidez?

Não, porque nós não criticamos a postura tradicional em muitas sociedades hoje vigentes no mundo. E como a Nossa Filosofia não tem intenção de catequizar, não é uma coisa que queira se expandir e, enfim, tomar simpatizantes de outros sistemas filosóficos, muito menos dos religiosos. Por esse motivo, nunca houve uma reação negativa, nunca houve uma oposição com relação a esta proposta.

Mas pode haver no âmbito das células familiares. Por exemplo, se eu desconheço determinada luz, sinto-me perdido no meu túnel de sombra e, de repente, aparece uma luz no fundo desse corredor, que pode ser, suponhamos, a Sua Proposta, e eu, de repente, passo a caminhar com outro alento nessa direção. E se o túnel de sombra é criado pela estrutura conservadora que a sociedade foi montando à minha volta, eu torno-me rebelde. Pelo menos caminho numa direção oposta. Essa cisão não cria anticorpos?

Quando num casal, numa estrutura familiar, um dos dois cônjuges adota esta filosofia e o outro não, eventualmente, pode ocorrer inicialmente alguma dificuldade de comunicação, como se só um dos dois adotasse um partido político, diferente do do outro cônjuge, ou um time desportivo, contrário ao time do outro cônjuge. Isso pode gerar um atrito momentâneo, caso não se verifique uma atitude de compreensão, carinho e respeito. Se você evoluiu, se adotou uma filosofia que tem pretensão a uma evolução maior, uma civilidade maior, uma lucidez maior, quem mudou foi você. Porque os dois se casaram dentro de uma determinada visão que um tinha do outro, e cada qual gostava do outro como ele era. Criaram-se regras e você mudou as regras do jogo, no meio do jogo. Quem está errado não é o cônjuge, que está reagindo mal. Então, você precisa ter mais paciência, tem que ter mais tolerância, deve tentar içá-lo, sem forçá-lo a isso. Talvez consiga incentivá-lo a adotar o mesmo estilo de vida através do exemplo, pela sua forma de agir, mostrando que hoje você é uma pessoa muito melhor para ele ou para ela.

E se a outra pessoa preferir viver em outro tipo de referências. Por exemplo, quiser viver para as aparências e não para o conteúdo do bolo?

Tem sido raro. O que nós temos observado, é que, se houver o processo que eu mencionei, de tolerância, de paciência e de carinho, cativando a outra pessoa ao invés de cobrar dela uma postura, o cônjuge, geralmente, acompanha. Porque gosta do que está vendo. Seja marido, seja mulher, nota que o outro melhorou. Melhorou como pai ou mãe, melhorou como marido ou esposa, melhorou como amante, melhorou como companheiro, como amigo. Então, em geral, ele ou ela acaba aceitando de bom grado e adotando a mesma filosofia de vida.

No “Encontro com o Mestre”, o pós-imberbe DeRose encontra-se com o DeRose já maduro, já consciente. O que é que o Mestre já consciente diria hoje ao DeRose pós-imberbe? Seria a mesma coisa que disse no livro?

Iria resultar no mesmo desencontro que eu expus no livro, porque ali era o autor com 58 anos, conversando com ele mesmo aos 18. Foi uma ficção, em que o DeRose de 18 anos aparece na vida do DeRose de 58. Ele, então, discorda, discute, debate. Ele diz: “não pode ser assim; eu não concordo com isso; isto não pode ser”. E o diálogo entre os dois, entre o jovem idealista de 18 e o homem experiente de 58, pretende dar ao leitor um equilíbrio entre as duas opiniões, porque muitos dos nossos leitores têm 18, 20, 25, 30, e outros têm 50, 60, 70, 80. São dois universos completamente diferentes e o livro procura casar esses dois universos, mostrando que ambos estão corretos, que tudo é uma questão de perspectiva.

Os dois equilibram-se? São uma mesma coisa? São dois olhares sobre a mesma coisa? Ou um é uma evolução sobre o outro?

Eu diria que, na verdade, os dois têm seus preconceitos, seus pré-conceitos. Ambos discriminam e ambos procuram não discriminar. Ambos tentam não ter preconceitos e aí, o mais velho aprende com o mais novo, e o mais novo aprende com o mais velho.

Nós tendemos a acrescentar na diferença. Normalmente as pessoas lidam muito mal com o que lhes é diferente, defendem-se, rejeitam, oprimem, suprimem, em vez de somarem-se na diferença.

Essas diferenças são muito importantes. Se todos os meus amigos só me fizessem elogios, eu estaria cercado por bajuladores, como alguns monarcas no passado e alguns empresários hoje. O que eu vou aprender com isso? Vou estar errando e todos vão dizer que estou acertando. Não vão me ajudar em nada. Mas quanto aos meus críticos de plantão, quando eu ainda nem tiver chegado a errar e eles já estarão me apontando o dedo. Quem estará me ajudando mais? Quem estará me ajudando mais é aquele que se considera inimigo, mas que, na verdade, é mais eficiente do que os meus amigos ao promover o meu crescimento, porque me mostra o lado sombrio do que eu estou cometendo ou do que estou prestes a cometer. Ele aponta o erro e eu posso corrigi-lo. Sempre comparo o amigo e o inimigo a uma árvore, em que as raízes, que estão nas trevas, que crescem para baixo, são os inimigos, porque estão nas trevas, mas sem os quais a árvore não fica em pé. A árvore precisa das raízes e os inimigos são as raízes. Já os amigos são as flores, são os frutos lindos, maravilhosos, mas sem as raízes, não existiriam.

O senhor, neste outro livro que acabou de ser lançado em Lisboa, dá logo o exemplo até na dedicatória da obra, porque dedica não só a pessoas que o senhor admira pela luz… Pode nos falar um pouco disso?

Há pessoas que, às vezes, por implicância, até por não conhecerem bem o outro lado, a outra verdade, atacam, difamam, agridem, injuriam, excluem. Você pode se considerar um perseguido, injustiçado, pode se considerar uma pessoa infeliz, pode ficar ressentido. Ou pode perceber, numa visão de grande angular, que aquilo ali foi extremamente importante e você pode ser grato àquelas pessoas. Mas com sinceridade. Não adianta ser grato com hipocrisia. Obviamente, tem que ser uma atitude autêntica.

O cristianismo só ficou conhecido porque foi perseguido, senão teria sido uma pequena seita judaica que teria desaparecido logo depois. Mas a perseguição deu visibilidade e, a partir daí, pessoas que concordavam com aquele ponto de vista, puderam conhecê-lo, fortalecer suas fileiras e fizeram com que se perenizasse.

Isso não é o que nós entendemos ou que a Sua Cultura descreve como ahimsá? Não é o trocar o fel por mel, é algo muito mais profundo?

Nossa Cultura propõe um conceito de não-agressão ativa e jamais passiva. Se você tiver maturidade e auto-estima, tem condições de compreender que determinada pessoa está sendo agressiva porque ela tem medo. Uma pessoa é agressiva quando teme.

Se aqui entrar a Jaya, que é minha weimaraner, um cão de grande porte, abanando o rabinho, nós vamos dizer: “que bonitinha, vem cá, deixe-me fazer um carinho.” Mas, se entrar aqui, rosnando, mostrando os dentes, você logo diz: “tira esse bicho daqui senão eu dou uma pedrada nele.” Por que você ficou agressivo? Ficou agressivo porque sentiu medo. E assim é em todas as situações. Se você prestar atenção, analisar com imparcialidade, vai notar que, em todos os momentos nos quais uma pessoa ficou agressiva foi porque ela sentiu medo, sentiu-se ameaçada, entrou em defensiva. Algumas pessoas são assim o tempo todo porque o mundo lhes parece ameaçador.

Se alguém lhe for agressivo, você pode, ou ter uma reação imatura, que é: foi agressivo comigo, devolvo-lhe agressividade e meia. Ou pode ter uma reação ponderada, de pessoa que tem elevada autoestima e que tem maturidade. Se foi agressivo comigo, eu tenho que compreender que você se sentiu agredido por mim, mas eu não tive a intenção de agredi-lo; você se sentiu ameaçado por mim, mas eu não tive a intenção de ameaçá-lo; você talvez tenha tido um péssimo dia; talvez tenha um péssimo casamento; não sei, talvez tenha dificuldades, problemas na sua vida. E eu vou devolver mais agressividade? Isso não vai me ajudar. Não vai ajudar a nossa relação, quer seja uma relação de negócios, se for uma relação de amizade, não importa o quê. Devolver agressividade é tentar combater o ódio com mais ódio. Tentar combater fogo com gasolina. Essa atitude não ajuda.

Eu gostei muito da sua frase “devolver fel com mel”. É interessante, é mais ou menos isso. Porque se a pessoa agrediu e você lhe retribui com um sorriso, um sorriso sincero, aquela agressividade se reduz. Reduz-se drasticamente.

Lembro-me de uma situação em que houve encontro de duas linhas filosóficas de nomes quase idênticos, mas que são antagônicas. Nesse encontro, entre as duas filosofias, uma senhora, professora da outra linha veio caminhando na minha direção, com o dedo em riste e disse: “DeRose, você isso, você aquilo!” E começou a me insultar em altos brados, com a intenção assumida de que todos escutassem. Imagine a cena kafkiana: ela era professora de uma filosofia que prega o equilíbrio, a não-agressão e o autocontrole, insultando e agredindo outro professor, só por ser linha diferente! Todos pararam para ver qual seria a minha reação. “Será que tudo isso que ele diz, afinal é mentira? Como será que ele vai reagir? Ele vai dizer umas boas a essa senhora? Vai gritar com ela? Talvez agredi-la? Vai virar-lhe as costas e sair andando como um mal educado? Ou vai ficar parado ouvindo, passivamente, deixando que ela agrida, fale, fale, fale, insulte, insulte, insulte? Qual será a reação?”

A reação foi: agarrei a senhora, abracei-a fortemente e quando eu a soltei, ela já não tinha mais agressão alguma, não tinha insulto algum para dizer. Quando eu a soltei, ela olhou para mim e disse: “Ah! DeRose, você, hein?” Pronto, tirou o fel com o mel do abraço, sem dar a outra face, sem ficar passivamente escutando as agressões dela e sem devolver as agressões o que, afinal, não ajudaria nada a minha relação com ela, não ajudaria nada minha imagem com os outros que estavam assistindo. E também não me ajudaria comigo mesmo, porque naquela noite eu não teria dormido tão bem.

Isso pressupõe o tal indivíduo que a Sua Cultura, o Método DeRose, pretende esculpir, do tal indivíduo lúcido, que se apercebe de uma forma como quem vê um filme o que está a acontecer à sua volta, e reage de uma forma atuante, consciente e lúcida, e não de uma forma primária.

Exatamente. Vamos trazer isso para a realidade de um casal, de um casamento, enfim, qualquer relacionamento afetivo. Em um casal, ambos sabem exatamente qual é a fisionomia, qual é o tom de voz e qual é a frase que irrita o outro. Sabem perfeitamente, pois vivem juntos. E num conflito de casal se este disse aquela palavra ou fez aquela cara, o outro sabe exatamente qual é a fisionomia, qual é o tom de voz e qual é a palavra que vai agradá-lo, que vai atenuar aquela situação. Mas por que não diz? “Porque eu não vou me dobrar, não vou ceder, senão o outro pisa em mim.”

Depende da sua atitude, ao dar essa palavra para interromper o conflito conjugal que pode surgir ali. E depois estabelecer limites. Se essa relação pode ser mantida, ela vai ser mantida com respeito, com consideração, com carinho, com companheirismo. Se não puder ser mantida, é uma pena. Porque toda relação que se rompe tem um custo emocional muito caro, um custo sobre a saúde muito alto. Mas, paciência. Há um momento mágico em que as relações precisam mesmo terminar porque, nesse caso, os protagonistas terminam o relacionamento como amigos. E se ultrapassar o momento mágico e as pessoas insistirem que têm de permanecer juntas, talvez na hora em que mudarem o status quo, rompam como inimigos, com ressentimentos.

Às vezes, é apenas a questão de “hoje eu cedo e amanhã a outra pessoa vai ceder”. Porque há uma reciprocidade natural entre os seres humanos. Quando você tem uma atitude cavalheiresca, uma atitude fidalga com relação a uma pessoa, mesmo que íntima, mesmo que seja um irmão, mesmo que seja um cônjuge, a tendência é que o outro reaja de uma forma semelhante numa circunstância imediata ou futura. Certa vez, um amigo meu estava dirigindo e conduzia muito mal. Fez uma conversão péssima e o outro motorista quase abalroou o carro dele, pôs a cabeça para fora e já ia dizer uns impropérios. Esse meu amigo abriu-lhe um sorriso muito simpático, como quem diz: desculpe, eu errei. O outro motorista botou a cabeça para dentro e disse: “vai, meu filho, vai!” E não deu briga. O que evitou o confronto? Foi só um sorriso.

A importância do indivíduo mais consciente, mais lúcido, mais atuante a todos os níveis. É isso que a Sua Cultura quer relançar dentro da sociedade?

Precisamente. A tendência é colocar um rótulo nessa Cultura. Eu prefiro chamar de Nossa Cultura ou Nosso Sistema, Nossa Filosofia, evitando colocar rótulo. Por quê? Porque na hora em que as pessoas colocam rótulos, elas engessam a coisa. E aí começam todas as intolerâncias, até com relação a quem está fora. Uma das confusões que eu procuro corrigir, uma das visões distorcidas, é que a pessoa pratique o Método dentro da sala de aula na qual ela o aprende. Só que ali é para aprender, não é para praticar. É para pôr em prática na vida real.

Por exemplo, se dentro de uma sala de classe, nós ensinamos a respirar corretamente, na hora em que a pessoa sai por aquela porta e vai embora, ela não há de sair respirando errado. Caso contrário, não terá adiantado nada. Ela aprendeu a respirar certo aqui dentro, agora deve sair respirando certo e ir caminhando até ao seu carro respirando certo, deve sentar-se e conduzir o veículo, respirando corretamente. Chega ao seu escritório e vai trabalhar, ou chega ao seu ginásio e vai fazer esporte, respirando corretamente. Vai respirar corretamente, de forma mais produtiva, sempre, porque foi isso que aprendeu aqui. Eu usei como exemplo a respiração, contudo, poderia utilizar qualquer outra técnica para ilustrar. Esse conjunto de técnicas e conceitos que o praticante aprende na nossa instituição, ele deve aplicar em todas as situações da vida. Isso é o que nós tentamos explicar, tentamos expor. Que o nosso aluno vai transmitir isso, vai irradiar isso, para toda a sociedade, porque ele vai irradiar para a família, vai irradiar aos amigos, vai reverberar aos seus colegas de trabalho. Então, aquilo vai criando ondas de choque e nossa proposta acaba por contagiar de uma forma positiva todas as pessoas que travam contato com o nosso praticante.

Se o Carl Sagan dizia que a sociedade corrompe o indivíduo, esse efeito impregnador também pode funcionar, e deve, e o senhor pretende que funcione em sentido contrário?

Sabemos que a sociedade influencia o indivíduo. No entanto, o indivíduo também influencia a sociedade.

Se o senhor escrevesse agora não o “Eu me lembro”, mas o “Eu sonho”, que sonho é que se escreveria?

Na verdade, no “Eu me lembro” eu não conseguiria acrescentar mais nada, porque aquele livro me saiu numa arrancada só. Às sete da noite eu comecei a escrever. Às sete da manhã, fui descansar. E pronto, estava terminado.

E o “Eu sonho”, o que é que tinha lá dentro?

Não sei. Há muita coisa! Eu tenho muitos sonhos!

Mas vê, com certeza. Nós sonhamos que os nossos filhos cresçam num mundo, numa determinada direção. E nós configuramos qual é essa direção. O senhor não “hipotecou”, não investiu 50 anos de investigação, em procura de saberes, sem sentir dentro de si onde é que queria chegar? Onde é que quer chegar?

Eu gostaria de chegar a um ponto em que as pessoas, minimamente, escutassem o que nós temos a dizer. Que nos permitissem falar. Que não nos amordaçassem. Nós temos coisas muito boas para dizer, não propondo um debate, mas propondo uma reflexão. O que ocorre é que os que não gostam do sistema, ou pensam que não gostam, não escutaram. Eles não conversaram comigo, não conversaram conosco, não conheceram a nossa gente, não leram nossos livros. O meu sonho seria poder arrancar essa mordaça.

Eu me sinto sob aquela punição antiga, punição eclesiástica, denominada silêncio obsequioso. “Disse o que não devia, não falará mais.” Não querem que eu fale. Mas você observa que o que eu digo não é polêmico. Não considero polêmico, porque nós não estamos polemizando, nós não estamos discordando dos outros. Não é agressivo, acho que não é, não tenho intenção de que seja. Não quero agredir ninguém. E a proposta é boa, a proposta de boas relações humanas, boas maneiras, boa saúde, boa qualidade de vida, boa cultura, bons hábitos. Nós trabalhamos essencialmente com adultos jovens. Portanto, ao produzir uma juventude saudável, longe das drogas, do álcool e do fumo, se mais nada prestasse no nosso trabalho, pelo menos isso seria uma contribuição a ser reconhecida. Contribuição essa que o nosso trabalho já está há meio século proporcionando à sociedade.

Para nós que de fora visitamos a Sua Cultura, vamos fazer um exercício de flash. A sua visão ou a sua missão aponta para onde? Onde é o horizonte que configura para esta sua passagem pela vida?

Eu tenho conhecido gente muito interessante, realmente exemplos de seres humanos. Pessoas com quem eu tenho o privilégio de conviver. Algumas há mais de 30 anos, outras há mais de 20 anos, outras que eu estou conhecendo agora, como é o seu caso, e que para mim constitui um privilégio. Essa profissão nossa, esse nosso ideal, nos permite isso: conhecer pessoas. Nós não somos head hunters, nós somos heart hunters.

Obrigado!

 

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