São cinco da manhã. Acabo de chegar, vindo do hospital para onde havíamos levado uma amiga que tinha passado mal. Ao entrar no quarto, deparei-me com uma bagunça. Jaya, minha weimaraner, havia fuçado a lata de lixo e espalhado tudo pelo chão. Ela nunca havia feito isso. Veio me cumprimentar efusivamente, como os cães fazem habitualmente quando os donos chegam. Eu me mantive sério, apontei para aquela sujeira e perguntei baixinho: “Quem fez isto?” A Jaya teve uma reação inusitada que me tocou profundamente. O que ocorreu em seguida, não conseguirei pôr em palavras, nem o seu clima emocional.
Jaya me fitou com um olhar de culpada, baixou a cabeça e saiu do quarto com rabinho baixo. Deixei passar alguns segundos e fui ver onde ela estava. A pobre estava no corredor, encostada num canto de parede como se estivesse com medo, ou com vergonha, abanando o rabinho baixo e me olhando de baixo para cima, com cara de quem sabia perfeitamente que havia errado. Veio me tocar com o focinho uma vez, duas, três, e eu resistindo estoicamente para não estragar tudo me derretendo e abraçando a coitadinha. Mas aguentei firme. Não disse nada e não fiz carinho. Ela olhou para mim mais uma vez e foi saindo de mansinho, subindo a escada escura que dá para o outro andar, onde ficou encolhida até que a Fernanda chegasse.
Isso tudo era quase a reação de uma animal que tomasse surras. Mas ela é super mimada. Nunca apanhou nem é tratada com rispidez. E, apesar disso, ficou magoadinha só porque eu fiquei quieto, olhando para ela. Depois, enquanto vim escrever estas palavras, ela veio aqui para me pedir desculpas. Primeiro, chegou do meu lado e ficou em pé, quietinha, me olhando. Depois, encostou o focinho de leve no meu braço. Então, achei que a indiferença já havia sido suficiente e que estava na hora de lhe dar carinho. Enquanto acariciava seu rosto, eu lhe disse baixinho: “Eu sei… Você não vai fazer mais, né?” Ela recostou a cabeça na minha perna e quase pude sentir que ela interiormente chorou de arrependimento. Ou de gratidão, por termos feito as pazes. Então, para consolidar nossa reconciliação, ela me trouxe seu toy e o entregou na minha mão. Em troca, ganhou um biscoito.
Os treinadores dizem que o cão não deve receber bronca pelo que ele fez há algum tempo, porque ele não associa o que fez com a bronca. Se isso for verdade, a Jaya me mostrou que é diferente, pois ela sabia exatamente porque eu estava chateado.
Por essas e outras, eu sempre digo que a Jaya não é uma cadela. É um anjo que se fez peludinho para me derramar bênçãos de ternura.
Mas que amor de cachorrinha!
Mas que amor de cachorrinha!
Pode haver coisa no mundo
Mais branca, mais bonitinha
Do que a tua barriguinha
Crivada de mamiquinha?
Pode haver coisa no mundo
Mais travessa, mais tontinha
Que esse amor de cachorrinha
Quando vem fazer festinha
Remexendo a traseirinha?
Vinicius de Moraes