quinta-feira, 3 de dezembro de 2009 | Autor:

Não leio jornais. Contudo, às vezes me cai nas mãos uma manchete e acabo lendo a matéria. Na virada do ano, encontrei no jornal O Globo, caderno de economia, a informação de que “BOVESPA sobe 142% em dólar e lidera ganhos no mundo. Real tem a maior alta global: 33,91%“.

Em comparação com a BOVESPA (Bolsa de Valores do Estado de São Paulo) que brilhou com seus 142%, o índice Down Jones ficou com modestos 20,06%!

Depois, li no box que em comparação com a valorização do real de 33,91%, a libra teve a valorização de 10,08% e o euro apenas 2,61%, sempre, todas elas, em relação ao dólar estadounidense.

Em 2001, o economista Jim O’Neill criou a sigla Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) para designar o grupo de países que deveria ganhar força na economia. De fato, em 2009 esses quatro países ocuparam as primeiras quatro posições no ranking de desempenho das bolsas de todo o mundo. Em primeiro lugar o Brasil com 142,70%, em segundo a Rússia com 126,51%, em terceiro a China com 115,78% e em quarto a Índia com 97,02%. Quase que na mesma ordem da sigla! Esse O’Neill é um profeta.

Não percamos nos labirintos da memória o fato inédito de que em 2009 o Brasil ofereceu alguns bilhões de dólares emprestados ao FMI. Que eu saiba, foi a primeira vez na História em que os papéis se inverteram e o Brasil não precisou pedir emprestado ao Fundo Monetário Internacional e sim esnobou o FMI, oferecendo-lhe um empréstimo.

Esperemos que esses fatos não sejam fruto de especulações e manobras que estão fora do alcance da compreensão dos simples mortais. E que o país saiba utilizar inteligentemente esses recursos para promover o crescimento sustentável da economia, tanto a nossa quanto – por reverberação – a dos nossos parceiros e hermanos da América Maior (a Améria Latina).

Adendo: Outra informação auspiciosa é a de que o Brasil (com 200 milhões de habitantes) teve 3,1 milhões de graduados em suas universidades no mesmo ano em que a Índia (com mais de 1 bilhão de habitantes) teve os mesmos 3,1 milhões de graduados e a China (com 1,35 bilhão de habitantes) teve apenas 3,3 milhões de graduados acadêmicos. Para complementar estes dados, leia o post Você sabia?, neste blog.

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segunda-feira, 30 de novembro de 2009 | Autor:

Introdução

O Acordo Ortográfico de 1986 era um bom acordo. Apesar de moderado, era um bom passo em frente no caminho da reunificação ortográfica com o Brasil. Mas sucumbiu à histeria ignorante e exibicionista de uns quantos e à cumplicidade doutros. Como consequência, fez-se este ano nova tentativa, bastante pior, e menos coerente. E o curioso é que já há quem, sem pudor, critique no Acordo de 1990 defeitos que resultaram das cedências às críticas de 1986. Receio mesmo que de novo se desencadeiem violentas reacções às ligeiríssimas modificações agora propostas, e, por isso, julgo que talvez valha a pena chamar a atenção para um certo número de factos. Pode ser que assim contribua para reduzir a emissão de disparates e para evitar que a discussão desça abaixo de níveis aceitáveis.

Primeiro facto. O objectivo do Acordo de 1986 não era modificar por modificar, mas apenas alterar o indispensável para conseguir a quase unificação da ortografia nos países de língua portuguesa. Se não houvesse pronunciadas diferenças entre as ortografias de Portugal e do Brasil, as reformas poderiam, então sim, considerar-se escusadas.

Segundo facto. Em questões de ortografia, é falso que Portugal tenha uma história de cedências ao Brasil. O contrário é que é verdadeiro.

Terceiro facto. Mexer na ortografia não é mexer na língua. Todas as palavras continuarão a ser pronunciadas (mal ou bem) como até aqui e a sintaxe continuará, sem mudança, sujeita aos mesmos pontapés de antes.

Quarto facto. Mudar a ortografia não implica mudar instantaneamente todos os livros de estudo, nem mesmo os dicionários. Essa mudança será gradual, feita ao longo de anos.

Quinto facto. A evolução da ortografia é sempre feita de cima, por especialistas, e, quase sempre, por decreto ou portaria.

Sexto facto. Tem havido, e continua a haver, reformas ortográficas em numerosos países, incluindo Portugal, algumas delas muito mais radicais que as tímidas propostas que agora nos fazem.

Sétimo facto. A demagogia, às vezes, é castigada. O que se segue ajudará a documentar estes factos.


História da ortografia em Portugal e no Brasil

A história da ortografia da língua portuguesa pode dividir-se em três períodos:

  • fonético, até ao século XVI;
  • pseudo-etimológico, desde o século XVI até 1911;
  • moderno, desde 1911 até hoje.

Quando a língua portuguesa começou a ser escrita, quem escrevia procurava representar foneticamente os sons da fala. Esta representação, no entanto, nunca foi satisfatória. Por um lado, não havia norma e, assim, por exemplo, o som /i/ podia ser representado por i, por y, e até por h (1); a nasalidade por m, por n, ou por til, etc. Por outro lado, a ortografia conservou-se em certos casos antiquada em relação à evolução da pronúncia das palavras, como em leer (ler) e teer (ter). Nos documentos mais antigos, de qualquer modo, o que se observa é a procura de uma grafia fonética. Com o decorrer do tempo, esta simplicidade foi desaparecendo por causa da influência do Latim. Assim, começaram a aparecer grafias como fecto (feito), regno (reino), fructo (fruito), etc. Realmente, uma das características do Renascimento foi a admiração pelos tempos clássicos e, em particular, pelo Latim. Isso consolidou, por assim dizer, e levou ao extremo a influência daquela língua na escrita do Português. Daqui resultou o aparecimento de inúmeras consoantes duplas, o aparecimento dos grupos phchthrh, que antes praticamente ninguém usava. Por outro lado, já nesse tempo, tal como hoje, a ignorância e o pretensiosismo se aliavam para produzir os maiores disparates, tais como, por exemplo, lythographiatypoialyrio, etc. (2)(3). É por esta razão que se chama pseudo-etimológico ao período em que esta tendência se impôs. Isto é, queria-se pretensiosamente fazer etimológica a ortografia, mas a ignorância não deixava ir além da pseudo-etimologia. Além disso, segundo J. J. Nunes (4), “por este processo [o da procura da grafia etimológica] recuavam-se bastantes séculos, fazendo ressurgir o que era remoto, e punha-se de lado a história do nosso idioma…”.

Deve-se dizer que cedo começou a haver reacções simplificativas. Por exemplo, Duarte Nunes de Leão, um dos primeiros gramáticos portugueses, reprova a pseudo-etimologia nascente em “Ortographia da lingoa portuguesa“, livro de 1576. Outro gramá- tico que se opôs a esta ortografia complicada foi Álvaro Ferreira de Vera, no seu livro “Ortographia ou arte para escrever certo na lingua portuguesa” (1633) (5). Também D. Francisco Manuel de Melo (século XVII) usou, pelo menos na sua obra “Segundas três musas do Melodino“, uma ortografia simplificada em que quase não havia consoantes dobradas, o ph era substituído por f, e o ch com som /k/ era substituído por qu (pharmacia -> farmaciaAchilles -> Aquiles(3).

No século seguinte, o XVIII, o célebre Luís António Verney apresentou também a sua proposta de ortografia simplificada e, mais do que isso, publicou nessa ortografia a sua grande obra “O verdadeiro método de estudar“.

O que é certo, porém, é que, na quase totalidade dos escritos, principalmente a partir da publicação em 1734 da “Ortographia ou arte de escrever e pronunciar com acerto a lingua portugueza” de João de Morais Madureyra Feyjó, se procurava a grafia mais complicada. Note-se, no entanto, que, apesar de tudo, o número de acentos era bastante restrito e empregue em casos e para fins algo diferentes dos actuais.

No princípio do século XIX, também Garrett defendia a simplificação ortográfica e criticava a ausência de norma. Nesse mesmo século proliferaram os pretendentes a reformadores da ortografia. Além de Garrett, pode-se mencionar, por exemplo, Castilho, como um dos mais conhecidos.

No decorrer do século XIX, começou a compreender-se a falta de justificação de muitas das grafias complicadas que então se usavam, mas, por outro lado, caiu-se no extremo de, mesmo aqueles sem quaisquer habilitações para tal, desatarem a simplificar disparatadamente. O resultado foi que, no fim do século XIX, a desordem ortográfica era total. Cada um escrevia como lhe parecia melhor.

Assim, em 1911, o Governo nomeou uma comissão para estabelecer a ortografia a usar nas publicações oficiais. Desta comissão fazia parte o insigne foneticista Gonçalves Viana, que já em 1907 apresentara um projecto de ortografia simplificada. O trabalho da comissão consistiu praticamente em adoptar o que propunha Gonçalves Viana e a nova ortografia foi oficializada por portaria de 1 de Setembro de 1911. Esta reforma da ortografia, a primeira oficial em Portugal, foi profunda e modificou completamente o aspecto da língua escrita, aproximando-o muito do actual. Foi, pode dizer-se, uma mudança verdadeiramente radical e feita sem qualquer acordo com o Brasil. Ao fazer desaparecer muitas consoantes dobradas, e os grupos phthrh, etc., a reforma, afinal, fazia desaparecer os exageros do período pseudo-etimológico e promovia um “regresso” ao período fonético. Por isso, é que, a propósito das muitas reacções adversas que houve na altura, escrevia J.J. Nunes (6), em 1918: “Pena é que a ortografia nova, que, em rigor, é velha, não seja compreendida por todos, ou antes, que se não queira ver a sua justeza, acabando-se de vez com os desconchavos que ainda perduram, quase sempre resultantes da ignorância…”. Como estas palavras continuam actuais !

O essencial da reforma ortográfica de 1911 foi acabar com o despotismo da etimologia, aproximando a ortografia oficial de uma escrita fonética. Aproximando, apenas, note-se, dado que, apesar de tudo, se fizeram vastas concessões a hábitos anteriores, como era o caso de manter inúmeras consoantes mudas, com um ou outro pretexto (homem, directo, sciência, etc.).

Um ponto em que a reforma foi incoerente e em que se afastou da tradição dos primeiros tempos do Português escrito foi a introdução profunda de acentos. Em particular, passaram a ser acentuadas todas as palavras esdrúxulas, o que não acontecia antes.

A seguir à reforma de 1911, houve vários ajustamentos efectuados por portarias de 19.11.1920, 23.09.1929, e 27.05.1931. A grande reforma seguinte foi a resultante do acordo ortográfico Portugal-Brasil de 1945, a qual, ligeiramente alterada por um decreto de 1971, deu origem à ortografia oficial que até agora se usou em Portugal. Note-se, de passagem, que o acordo de 1945 anulou algumas modificações introduzidas em 1911 e 1931.

Vejamos o que entretanto se passava no Brasil. No século XIX, a ortografia no Brasil estava no mesmo estado que em Portugal. Pode-se dizer que havia unidade… no caos.

Em 1907, a Academia Brasileira de Letras tivera em estudo um projecto de reforma análogo ao de Gonçalves Viana, que, como vimos, levou à reforma portuguesa de 1911. Neste projecto, embora baseado no do foneticista português, colaboraram vários brasileiros ilustres, como Euclides da Cunha, Rui Barbosa e outros (7). Isto mostra que, em ambos os países, há muito se sentia a necessidade de modificar a ortografia. O mesmo, aliás, se passava noutros países e tinham sido e viriam a ser feitas reformas em vários deles, como se verá mais à frente.

O projecto da Academia Brasileira de Letras de 1907 acabou por não ir por diante e, por outro lado, Portugal cometeu o absurdo erro de avançar sozinho para a reforma. Assim, e apesar de a reforma portuguesa ser defendida sem alterações, para uso no Brasil, por filólogos brasileiros do calibre de Antenor Nascentes e Mário Barreto, o certo é que, durante alguns anos, ficaram os dois países com ortografias completamente diferentes: Portugal com uma ortografia moderna, o Brasil com a velha ortografia pseudo-etimológica.

Foi em 1924 que as duas Academias, a Brasileira de Letras e a das Ciências de Portugal, resolveram procurar uma ortografia comum. Claro que, para isso, o Brasil teria que se aproximar de Portugal, que, na altura, caminhava na frente. Houve em 1931 um acordo preliminar entre as duas Academias, em que se adoptava praticamente a ortografia portuguesa. Assim se iniciou o processo de convergência das ortografias dos dois países com um reconhecimento quase total, por parte do Brasil, da superioridade da ortografia portuguesa. Contudo, os vocabulários que se publicaram, em 1940 (Academia das Ciências de Portugal) e 1943 (Academia Brasileira de Letras), continham ainda algumas divergências. Por isso, houve, ainda em 1943, em Lisboa, uma Convenção Ortográfica, que deu origem ao Acordo Ortográfico de 1945. Este acordo tornou-se lei em Portugal pelo Decreto 35 228 de 08.12.45, mas no Brasil não foi ratificado pelo Congresso; e, por isso, os Brasileiros continuaram a regular-se pela ortografia do Vocabulário de 1943.

Em 1971, novo acordo entre Portugal e o Brasil aproximou um pouco mais a ortografia do Brasil da de Portugal. Tratou-se de cedência brasileira, mais uma vez. O acordo teve a sorte de ser oficializado sem burburinho. Note-se aqui que, do ponto de vista absoluto, ambas as grafias eram nesta altura perfeitamente razoáveis e sua única desvantagem era apresentarem ainda algumas diferenças. Não fosse isso, seria, de facto, inútil “mexer” mais.

Em 1973, recomeçaram as negociações e, em 1975, as duas Academias mais uma vez chegaram a acordo, o qual “não foi contudo transformado em lei, pois circunstâncias adversas de vária ordem não permitiram uma consideração pública da matéria” (8).

Em 1986, o Presidente José Sarney tentou resolver o assunto, que há longo tempo se arrastava, e promoveu o encontro dos sete países de língua portuguesa no Rio de Janeiro. Deste encontro, mais uma vez saíu um acordo ortográfico e mais uma vez o acordo não foi por diante, devido a um surpreendente alarido que se levantou em Portugal. Este alarido, longe de ser resultado de defeitos do acordo, deveu-se sobretudo a uma confrangedora ignorância do assunto por parte dos pouco ponderados adversários da união ortográfica. Mas a verdade é que o acordo foi suspenso.

O pior é que se concluiu este ano novo acordo, dito “mais moderado”, mas na verdade mais incoerente, e exposto, este sim, a críticas com fundamento. Os responsáveis portugueses pelo Acordo de 1986, que garantia uma unificação quase total da ortografia da língua, cederam aos auto-proclamados donos da Cultura Nacional e, agora, em 1990, produziram um acordo imperfeito, que não unifica, cheio de grafias duplas, defeitos estes que são deslealmente aproveitados pelos detractores que os causaram. É o castigo da demagogia. Enfim, se encarado como transitório, como mais uma pequena dose de mudança sem dor para não assarapantar o profanum vulgum, este acordozito é um passo na direcção certa. Para mim, no entanto, o método correcto seria fazer a unificação total de uma só vez e liquidar definitivamente o problema.


Reformas e acordos ortográficos noutras línguas

Contra o que tem sido afirmado, não têm faltado reformas ortográficas na historia das principais línguas civilizadas. Percorramos algumas dessas línguas.

Espanhol. “A ortografia do Espanhol medieval é uma descrição fidedigna da língua, tal como ela era falada nos círculos culturais de Toledo por volta de 1275. Essa representação gráfica começou a ser defeituosa pelos fins do século XV…[O gramático] Nebrija [séculos XV e XVI] reafirmou o princípio fonético de que a língua se deve escrever como se pronuncia. Por esta época, os humanistas tinham começado a insistir na etimologia… Nos séculos XVI e XVII, tendo-se produzido mudanças consideráveis de pronúncia, a ortografia espanhola apresentava diversas anomalias, o que levou a Academia da Lingua a começar a adoptar um controle oficial da língua no século XVIII” (10). Sucessivas reformas, a última das quais em 1815, acabaram por conduzir à ortografia actual, que é praticamente fonética. Os países de língua espanhola usam, de um modo geral, a mesma ortografia, mas a união ortográfica está longe de se poder considerar definitivamente resolvida. Tem havido acordos, princi- palmente com a Argentina, que participa activamente nas discussões, e o Chile, que de 1822 até 1938 já apresentou 18 propostas de reforma ortográfica. Por seu lado, a Espanha, preocupada com a manutenção da unidade da língua espanhola no mundo, vai retardando as decisões. Em vários casos, a Espanha tem aceitado propostas de uma das suas antigas colónias, como foi o caso em 1952, em que certas tolerâncias propostas pela Argentina foram adoptadas pela Espanha e outros países de língua espanhola (11).

Italiano. O italiano moderno (e a correspondente ortografia) são obra, algo artificial, por assim dizer, de Alessandro Manzoni (1785-1873), que escreveu, na forma que recomendava e que vingou, o célebre romance I promessi sposi, considerado uma das mais notáveis obras da literatura italiana. Com a língua italiana praticamente concentrada num só país, não há necessidade de acordos internacionais.

Alemão. A escrita actual, baseada em Lutero, com a sua célebre tradução da Bíblia, em Freyer (1722) e Adelung (1788), é o resultado de acordos oficiais de 1876, 1901, 1920, 1954, etc., entre os países de língua alemã. Apesar destes acordos, também nada ainda é definitivo. As reuniões internacionais têm continuado: 1958 (Wiesbaden Empfehlungen), 1973 (Wiener Empfehlungen), 1978, 1980. Na última reunião internacional de que tenho conhecimento, em 1986, em Viena, participaram a Bélgica, a RFA, o Tirol italiano, o Liechtenstein, a Áustria, a Suíça, a RDA, o Luxemburgo e a Alsácia. As discussões têm sido agitadas e ainda não se alcançou a estabilidade. Como exemplo de pontos em discussão, anotem-se as numerosas e complicadas regras do uso da vírgula, as maiúsculas dos substantivos, a eliminação de consoantes mudas e de vogais duplas, etc. Ficou prevista para este ano nova reunião. [Nota em 1996: Em Julho de 1996, firmou-se em Viena um acordo entre os países de língua alemã sobre as novas regras de ortografia, as quais devem entrar em vigor em 1 de Agosto de 1998. Consultar página de actualização sobre ortografia alemã].

Holandês. Na Holanda, por volta de 1900, a ortografia sofreu uma reforma radical, mexendo mesmo com a própria gramática. Até nomes de localidades foram revistos. As discussões sobre ortografia, que, tal como entre nós, têm por vezes sido acaloradas, nunca pararam. Os Flamengos, da Bélgica, cuja língua é o Holandês, adoptaram a ortografia da Holanda, mas as reuniões e as propostas de reforma ainda não terminaram.

Russo. A Academia das Ciências Russa preparou em 1912 um projecto de reforma da ortografia que acabou por ser adoptado em 1917, a seguir à revolução. Esta reforma envolveu simplificações profundas, tendo sido eliminadas várias letras do alfabeto. Desde 1939, ano em que foi nomeada uma comissão de linguistas para o estudo de certos problemas da língua, que são regularmente actualizados os prontuários ortográficos. Felizmente, tal como para o Italiano, não há problemas internacionais.

Turco. O caso mais espantoso de reforma ortográfica parece ser o da Turquia. Aí, o presidente Mustafá Kemal Atatürk, em 1928, aboliu pura e simplesmente o alfabeto até então usado, o árabe, e substituiu-o pelo latino. Todas as pessoas, apesar dos protestos dos reaccionários, tiveram que reaprender a ler. Esta cataclísmica reforma ortográfica vingou e, para as novas gerações, o alfabeto árabe é tão estranho como para a população europeia em geral.

Chinês. Depois da última guerra, o Governo da China Popular simplificou um grande número dos caracteres que se usam para escrever as línguas da China, no que não foi seguido, nem pelas autoridades da Formosa, nem pela maioria das comunidades de chineses do estrangeiro. Assim, mantêm-se até hoje nas duas regiões diferenças ortográficas significativas. O próprio nome do país se escreve de modo diferente nas duas ortografias.

Japonês. Os caracteres chineses simplificados foram também adoptados no Japão, a partir de 1947 (12).

Grego. Em 1986, o Grego libertou-se finalmente do pesado sistema de acentos que por desgraça lhe caíra em cima nos tempos da civilização helenística. Uma pesada herança de Aristófanes de Bizâncio, bibliotecário de Alexandria e filólogo do século II AC.

Francês. A ortografia do Francês tem variado ao longo dos séculos, quase sempre por saltos bruscos. No século XVI, a escola de Ronsard levou a grande maioria dos escritores a adoptar uma ortografia reformada, despojada das numerosas letras mudas inúteis. Foi nesse século, no entanto, que Francisco I decretou a célebre regra da concordância do particípio, por imitação do Italiano (regra, aliás, cuja eliminação está na mira dos reformadores actuais). A primeira edição do dicionário da Academia, no século XVII, sob a influência de Corneille, introduziu novas reformas. No século seguinte, a edição de 1740 do mesmo dicionário dava ortografia nova a nada menos de 2000 palavras das 3000 que o compunham. A ortografia actual do Francês fixou-se na forma actual por volta de 1830. A norma foi fixada na 6ª edição do Dicionário da Academia, de 1836. Desde o princípio deste século, porém, já em três ocasiões se iniciaram movimentos de reformas ortográficas: em 1901, em 1965 e em 1988. Em 1901, a reforma foi patrocinada por escritores como Anatole France, Georges Leygues e Ferdinand Brunot e teve um apoio de tal forma amplo que o Ministério da Instrução chegou a publicar uma portaria com as mudanças propostas. No entanto, esta portaria acabou por não ser aplicada, devido à campanha contra a reforma feita pela imprensa. Em 1965, uma comissão presidida por M. Beslais, ex-Director do Ensino Primário, apresentou um relatório com nova proposta de reforma. Nela, defendiam-se transformações do tipo

    théatre -> téatre

    pharmacie -> farmacie

    etc.

Este relatório não teve seguimento, embora em 1975 uma nova portaria determinasse mudanças ortográficas menos ambiciosas. Esta portaria teve a sorte da do princípio do século, isto é, o total esquecimento. Apesar de aparentemente continuarem em vigor, ninguém as cumpre. O debate recomeçou em fins de 1988, desencadeado por uma sondagem na revista do Sindicato Nacional dos Professores e foi animado por numerosas tomadas de posição e publicação de artigos e livros. Dentre as tomadas de posição mais relevantes note-se a do chamado Manifesto dos dez linguistas, publicado em “Le Monde” de 07/02/1989, que defendia a necessidade de uma reforma, e a publicação em fins de 1989 de três livros sobre o assunto (“Le livre de l’orthographe“, de Bernard Pivot,Les délires de l’orthographe“, de Nina Catach, e “Que vive l’ortografe!”, de Jacques Leconte e Philippe Cibois). O assunto foi pelo Governo julgado suficientemente importante para justificar a nomeação, por decreto de 02.06.89, do Conseil supérieur de la langue française (CSLF), com o objectivo de “rectificar” a ortografia. Em fins de 1989, o Governo encarregou o CLSF de se pronunciar sobre um certo número de pontos concretos. Ao fim de uma dezena de reuniões, conseguiu-se um acordo, de que participaram a Bélgica, a Suíça e o Canadá, acordo que foi aprovado pela Academia Francesa. Em 19.06.90, foi apresentado o relatório do CSLF, a que se seguiram ainda negociações informais entre a Academia e os serviços do Primeiro Ministro. Finalmente, em Outubro passado, o CSLF recebeu e aprovou a versão definitiva da reforma. Pretende-se que seja publicada oficialmente ainda antes do Natal e que entre em vigor nas escolas a partir do Outono de 1991, embora haja a intenção de tolerar a antiga ortografia por mais alguns anos. Tudo leva a crer que, desta vez, a reforma terá destino diferente das que a antecederam neste século.


O que deve ser a ortografia ideal ?

Há a ideia generalizada de que uma ortografia é tanto mais perfeita quanto mais fonética for. Ora isto só é verdade até certo ponto. A ortografia fonética (*) tem vantagens e inconvenientes e, para cada língua, é preciso fazer a ponderação dessas vantagens e inconvenientes.

Se se trata de uma língua restrita a poucos falantes e a uma região relativamente pequena e com boas comunicações, essa língua terá poucas variantes (ou marcas tópicas, como se diz). Será falada de igual modo por todos. Então, a escrita fonética é o que mais convém, porque é lógica e permite, mais do que qualquer outra, ler e escrever sem erros, mesmo aos menos cultos e aos estrangeiros.

Se, porém, se trata de uma língua mundial como o Português, com um grande número de falantes e abrangendo enormes territórios com algumas dificuldades de contactos, já o caso muda de figura. De facto, então, há certamente variantes na linguagem falada, há inúmeros sotaques regionais, há, enfim, as chamadas marcas tópicas. E, neste caso, se se vai para a escrita fonética, que variante, que sotaque, se há-de representar? É que, uma vez escolhida essa variante, a escrita será fonética para ela, mas não o será para as outras.

Assim, no caso do Português, para escrever foneticamente, por exemplo, o número 20, poderiam eventualmente usar-se as escritas bintvintvintchi, conforme fosse escolhida a pronúncia do Minho, de Lisboa, ou do Rio. Isto mostra que, para uma grande língua, a escrita totalmente fonética é inviável.

Deve-se, então, ir para uma escrita ideográfica, como a chinesa, ou como a que usa algarismos? No caso dos números, realmente, a escrita com algarismos é totalmente ideográfica. 20 é entendido por todos os falantes de Português (e de outras línguas), lendo cada um a palavra correspondente com a sua pronúncia própria. Esta é uma vantagem da escrita ideográfica; ela é “supratópica”. Usar tal escrita para a linguagem corrente, porém, tem enormes desvantagens, visto que é colossal o número de símbolos necessários (caso do Chinês).

Por isso, o que há a fazer, para uma língua como o Português, é usar um meio termo. Devem representar-se as palavras de um modo, não completamente fonético, mas aproximadamente fonético. Cada palavra terá, então, além das suas componentes fonéticas (letras e grupos de letras), que correspondem a sons que podem ser diferentes de região para região, uma individualidade visual, um aspecto, próprios, que terão de ser reconhecidos por todos. Isso não impedirá que cada palavra escrita, reconhecida imediatamente por todos os falantes da língua (os não analfabetos, evidentemente), seja pronunciada de modo diferente em cada região.

Aceites estes princípios, compreende-se que, em face das grafias do género de Antônio (Brasil) e António (Portugal), os negociadores do Acordo Ortográfico de 1986 se tivessem decidido pela grafia unificadora Antonio, como, aliás, se escrevia antes de 1911. Mas não adiantou. As emoções boçais levaram a melhor.

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(*) Por ortografia fonética entende-se uma ortografia em que a cada som corresponda uma letra ou grupo de letras únicos e a cada letra ou grupo de letras um som único, e, ainda, em que, pelo menos no caso das línguas indo-europeias, seja assinalada de algum modo a sílaba tónica.

O presente texto encontra-se no link http://www.dha.lnec.pt/npe/portugues/paginas_pessoais/MMC/Ortograf.html

quarta-feira, 7 de outubro de 2009 | Autor:

Todos quantos trabalham com Yôga receberam mais um importante reconhecimento no dia sete, quando representando essa filosofia ancestral, recebi a outorga do Colar Marechal Deodoro da Fonseca. Trata-se de uma condecoração oficial, governamental, comemorativa aos 120 anos de Proclamação da República e Instituição da Bandeira Nacional.

Como todos os instrutores desta filosofia, eu não gosto de solenidades. Preferia ficar em casa, escrevendo, ou com meus amigos, conversando descontraidamente. Mas sou obrigado a admitir que essas homenagens constituem demonstrações históricas de reconhecimento a um professor ou escritor de Yôga com uma regularidade tal como nunca antes ocorreram no nosso país (e creio que em país algum na História Universal!). Daí a necessidade de valorizarmos cada medalha, láurea, comenda, condecoração ou homenagem de que sejamos alvo.

Por isso, recomendamos que nossos colegas procurem comparecer e testemunhar o carinho e o respeito que as instituições e as autoridades demonstram pelo nosso trabalho. O Yôga precisa desse tipo de reconhecimento. Os instrutores de Yôga precisam dele ainda mais para ofertar como documento aos seus alunos, à sua família, à opinião pública e à Imprensa da sua cidade.

RafaRamos

Foi tão bonito Mestrão.
É muito bom ver o respeito e o carinho que eles têm por você, tudo isso é mais do que merecido =).

Beijão,
Rafa Ramos

Priscila Ramos – Alphaville, SP

Foi a condecoração mais importante da noite! Parabéns!
Veja se dá para visualizar a foto…

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Beijos mil
Pri

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sexta-feira, 2 de outubro de 2009 | Autor:

Uma realização que parecia impossível, mas que era vital para todos nós, foi conquistada. Dezenas, senão centenas de colegas se mobilizaram para darmos esse passo fundamental na nossa existência e na nossa história. Algo que supera os sonhos e a imaginação mais fértil e, contudo, demonstra o poder do grupo coeso, bem como a força da mentalização.

Nossa história poderia seguir este ou aquele caminho. Este, é um caminho de glória e dignidade, de sucesso e prosperidade, de reconhecimento e credibilidade. O outro, poderia ser de tormento.

Esta semana vencemos esse imensurável desafio. Todos juntos, triunfamos. “A união fez de nós o que somos. Fará por nós o que nem imaginamos!”

A vitória foi tão retumbante que precisamos compartilhá-la com nossos companheiros. Primeiro, porque nenhum de nós conseguiria conquistá-la sozinho. Segundo, para agradecer a todos quantos puseram-se de pé e realizaram suas ações efetivas.

Quero agradecer a estes herois, citando um trecho do Tratado de Yôga:

“Há no mundo um pequeno número de pessoas muito especiais que se realizam ajudando os outros e construindo coisas positivas. Essas pessoas são paladinos da dedicação. São seres de luz, cuja satisfação reside em espargir felicidade em torno de si e em deixar um rastro de boas obras por onde passam. Tais paladinos costumam estar sempre disponíveis e até mesmo oferecer-se para realizar, anonimamente, trabalhos de suma importância, sem esperar nenhuma recompensa nem remuneração. Sua gratificação é saber que o trabalho foi realizado satisfatoriamente.

Enquanto a maior parte destroi, esses poucos Herois da Humanidade constroem e fazem-no com a força de milhares, pois, mesmo sob o assédio destruidor da maioria, a Espécie Humana progride graças aos que se doam.”

Deposito o meu coração agradecido a estes guerreiros:

CHARLES MACIEL
FERNANDA NEIS
VIRGÍNIA BARBOSA
CARLA MADER

DORA SANTOS
RODRIGO DE BONA
CLÉLIO BERTI
ROGÉRIO BRANT

Membros do Conselho Administrativo, que deram seu “sangue, suor e lágrimas”, mas venceram:
Fernanda Neis
Charles Maciel
Gisele Setti
Heloisa Gabriolli
Rosana Ortega
Daniel De Nardi
Daniel Borges
Flavio Moreira
André Mafra

Membros do Colegiado de Presidentes de Federações de vários países, que deram seu apoio incondicional:
Edgardo Caramella
Joris Marengo
Naiana Alberti
Maria Helena Aguiar
Nina de Holanda
Vanessa de Holanda
Sergio Santos
Maria Teresa Milanez
Marcia Zanchi
António Pereira
Luís Lopes
Sónia Saraiva
Maria Cruz

Os leões do SwáSthya, que se ofereceram para agir ao invés de apenas falar e sem os quais muito do que se fez não teria sido conseguido:
Ricardo Mallet
Nilzo Andrade
Fabiano Gomes
Dantas de Medeiros
Gustavo Oliveira
Milton Marino
Gustavo Cardoso
Célia Berlim
Rosângela de Castro

E a todos os colegas que colaboraram arrecadando fundos para o FDI,  participando dos eventos promovidos pelo Conselho (cuja renda é revertida ao FDI), aconselhando conforme suas especialidades, indicando, abrindo portas ou simplesmente fazendo parte e estando presentes a nos estimular com o seu carinho. 

Todos o fizeram de forma desinteressada, alguns até anonimamente. Um voto de profunda gratidão àqueles que não foram citados nominalmente, mas mostraram que podemos contar com nossos irmãos.

Certamente, os resultados desta vitória vão beneficiar a todos os que estão vinculados diretamente à nossa egrégora.

Como toda realização muito relevante, esta deve primar pela discrição, motivo pelo qual nenhum de nós comentará sobre ela mais do que foi dito neste post.

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quinta-feira, 24 de setembro de 2009 | Autor:

O que é o Yôga?

(Extrato de um capítulo do livro Tratado de Yôga)

Certa vez um famoso bailarino improvisou alguns movimentos instintivos, porém, extremamente sofisticados graças ao seu virtuosismo e, por isso mesmo, lindíssimos. Essa linguagem corporal não era propriamente um ballet, mas, inegavelmente, havia sido inspirada na dança.

A arrebatadora beleza da técnica emocionava a quantos assistiam à sua expressividade e as pessoas pediam que o bailarino lhes ensinasse sua arte. Ele assim o fez. No início, o método não tinha nome. Era algo espontâneo, que vinha de dentro, e só encontrava eco no coração da­queles que também haviam nascido com o galardão de uma sensibili­dade mais apurada.

Os anos foram-se passando e o grande bailarino conseguiu transmitir boa parte do seu conhecimento. Até que um dia, muito tempo depois, o Mestre passou para os planos invisíveis. Sua arte, no entanto, não morreu. Os discípulos mais leais preservaram-na intacta e assumiram a missão de retransmiti-la. Os pupilos dessa nova geração compreenderam a importância de tornar-se também instrutores e de não modificar, não alterar nada do ensinamento genial do primeiro Mentor.

Em algum momento na História essa arte ganhou o nome de integri­dade, integração, união: em sânscrito, Yôga! Seu fundador ingressou na mitologia com o nome de Shiva e com o título de Natarája, Rei dos Bailarinos.

Esses fatos ocorreram há mais de 5000 anos a Noroeste da Índia, no Vale do Indo, que era habitado pelo povo drávida. Portanto, vamos estudar as origens do Yôga nessa época e localizar sua proposta original para podermos identificar um ensinamento autêntico e distingui-lo de outros que estejam comprometidos pelo consumismo ou pela inter­ferência de modalidades alienígenas e incompatíveis.

Tanto o Yôga, quanto o Tantra e o Sámkhya[1] foram desenvolvidos por esse povo admirável. Sua civilização, uma das mais avançadas da anti­guidade, ficou perdida e soterrada durante milhares de anos, até que os arqueólogos do final do século xix encontraram evidências da sua existência e escavaram dois importantes sítios arqueológicos onde descobriram respectivamente as cidades de Harappá e Mohenjo-Daro. Depois, foram surgindo outros e outros. Hoje já são milhares de sítios, distribuídos por uma área maior que o Egito e a Mesopotâmia.

Ficaram impressionados com o que encontraram. Cidades com urba­nismo planejado. Ao invés de ruelas tortuosas, largas avenidas de até 14 metros de largura, cortando a cidade no sentido Norte-Sul e Leste-Oeste. Entre elas, ruas de pedestres, nas quais não passavam carros de boi. Nessas, as casas da classe média tinham dois andares, átrio interno, instalações sanitárias dentro de casa, água corrente! Não se esqueça de que estamos falando de uma civilização que floresceu 3000 anos antes de Cristo.

Não era só isso. Iluminação nas ruas e esgotos cobertos, brinquedos de crianças em que os carros tinham rodas que giravam, a cabeça dos bois articulada, bonecas com cabelos implantados, imponentes celeiros que possuíam um engenhoso sistema de ventilação, e plataformas elevadas para facilitar a carga e descarga das carroças.

Noutras culturas do mesmo período, as construções dos soberanos apresentavam opulentos palácios e majestosos túmulos reais, enquanto o povo subsistia em choupanas insalubres. Na cultura dravídica, ao contrário, o povo vivia bem e a arquitetura da administração pública era despojada.

Outra curiosidade foi expressada por Gaston Courtillier em seu livro Antigas Civilizações, Editions Ferni, página 24, quando declarou: “Ficamos verdadeiramente admirados de, nesses tempos profundamente religiosos, não encontrarmos templos ou vestígios da estatuária que os povoaria, como foi regra noutros lugares durante toda a antiguidade, nem sequer estatuetas de adoradores em atitude de oração diante de sua divindade”. Para nós isso faz sentido, afinal, sabemos que na Índia Antiga, o Sámkhya teve seu momento de esplendor. E na Índia pré-clássica, a variedade Niríshwarasámkhya, foi ainda mais fortemente naturalista que o Sámkhya Clássico.

Sua sociedade foi identificada como matriarcal, o que também está coerente com as nossas fontes, segundo as quais o Yôga surgiu numa cultura tântrica.

Cavando mais, os arqueólogos descobriram outra cidade sob os escombros da primeira. Para sua surpresa, mais abaixo, outra cidade, bem mais antiga. Cavaram mais e encontraram outra cidade embaixo dessa. E mais outra. E outra mais. O que chamava a atenção era o fato de que, quanto mais profundamente cavavam, mais avançada era sua tecnologia, tanto de arquitetura quanto de utensílios. Até que deram com um lençol d’água e precisaram parar de cavar mais fundo. O que nos perguntamos é: quantas outras cidades haveria lá por baixo e quão mais evoluídas seriam elas?[2]

Bem, foi nessa civilização que o Yôga surgiu. Uma civilização tântrica (matriarcal) e sámkhya (naturalista).

Cerca de mil e quinhentos anos depois, a Civilização do Vale do Indo foi invadida por um povo sub-bárbaro proveniente da Europa Central, os áryas ou arianos. Consta, na História atual, que estes subjugaram os drávidas, destruíram sua civilização, absorveram parte da sua cultura, exterminaram quase todos os vencidos e escravizaram os poucos sobreviventes. Outros fugiram, migrando para o extremo sul da Índia e Srí Lanka, onde vivem seus descendentes até hoje, constituindo a etnia Tamil[3].

O Yôga foi produto de uma civilização não guerreira, naturalista e matriarcal. A partir de mais ou menos 1500 a.C. foi absorvido por um outro povo que era o seu oposto: guerreiro, místico e patriarcal. Cerca de mil e duzentos anos após a invasão (o que não é pouco), esse acervo cultural foi formalmente arianizado mediante a célebre obra de Pátañjali, o Yôga Sútra. Estava inaugurada uma releitura desta filosofia que, a partir de então, passaria a ser conhecida como Yôga Darshana, ou Yôga Clássico, a qual propunha nada menos que o oposto da proposta comportamental do verdadeiro Yôga em suas origens dravidianas. O Yôga dos drávidas era matriarcal, sensorial e desrepressor, numa palavra, ele era tântrico. Essa nova interpretação arianizada era patriarcal, antissensorial e repressora, ou seja, brahmáchárya.

O mais interessante nesse processo de deturpação é que se não fosse Pátañjali, o Yôga teria desaparecido dos registros históricos. Graças a ele, que obviamente era bem intencionado e sábio, hoje sabemos da existência de sua codificação do Yôga Clássico. Os arianos discriminavam tudo o que fosse tipicamente dravídico devido à característica matriarcal considerada subversiva pela sociedade, estritamente patriarcal dos áryas. Adaptando o Yôga para a realidade ariana então vigente, Pátañjali conseguiu que a sociedade e os poderes constituídos da época o aceitassem. Com isso, tal tradição foi preservada e pôde chegar até os nossos dias.

Na Idade Média, o Yôga sofreu outra grave deformação, quando o grande Mestre de filosofia Vêdánta, Shankaráchárya, converteu grande parte da população. Esse fato se refletiu no Yôga, pois, uma vez que a maioria dos indianos tornara-se vêdánta[4], ao exercer o Yôga a opinião pública e suas lideranças passaram a conferir um formato espiritualista[5] ao Yôga que, desde as origens e mesmo no período clássico, era fundamentado na filosofia Sámkhya, naturalista.

No século XX o Yôga sofreu mais um duro golpe: foi descoberto pelo Ocidente e… ocidentalizado, é claro. Tornou-se utilitário, consumista, algo amorfo, feio e maçante.

A um Yôga legítimo é lindo de se assistir, é fascinante de se praticar e é excelente como filosofia de vida. É dinâmico, é forte, é para gente jovem[6]. Todos os que nos visitam e assistem ao vídeo de apresentação do método ficam boquiabertos e comentam a mesma coisa: imaginavam que o Yôga fosse algo parado, a ponto de requerer paciência, ou algo supostamente indicado para a terceira idade! Ora, se alguém na terceira idade resolver iniciar a prática de um Yôga verdadeiro corre o risco de ter uma síncope. E se for um Yôga inautêntico, fruto de sucessivas simplificações, adaptações acumulativas e ocidentalizações inescrupulosas, então não vale a pena denominar de Yôga essa anomalia.

O problema é que muita gente sem certificado de instrutor atirou-se a lecionar e, como não possui repertório de técnicas, mistura um pouco de ginástica, outro tanto de esoterismo, um quê de hipnose, uma pitada de espiritismo, algo da linguagem do tai-chi, uns conceitos macrobióticos, tudo isso temperado com atmosfera de terapias alternativas e embalado para consumo em voz macia, com música new-age. Para o leigo, que não tem a mínima ideia do que seja o Yôga, a não ser uma visão estereotipada e falsa, aquela miscelânea inverossímil satisfaz. Só que ela, de Yôga mesmo que é bom, não tem nada.

Não devemos esquecer de que a palavra Yôga significa integridade. É preciso que seus representantes sejam íntegros. Por isso, nos próximos capítulos você vai ter a satisfação de conhecer uma modalidade fascinante, lindíssima, extremamente agradável de se praticar e com uma carga de resultados capaz de deixar qualquer um perplexo. É o SwáSthya, o próprio Tronco Pré-Clássico, pré-ariano, pré-vêdico, proto-histórico, o Yôga de Shiva, ultra-integral, com todas as suas características Tántrika e Sámkhya preservadas e mais: sua execução lembrando uma dança, resgatada das camadas mais remotas do inconsciente coletivo!

Evidências da existência do Yôga Primitivo

Nada nasce já clássico

Em nossos estudos e mais de 20 anos de viagens à Índia detectamos um erro gravíssimo cometido pela maior parte dos autores de livros e pela maioria dos professores. Declaram eles com frequência que o mais antigo é o Yôga Clássico, do qual ter-se-iam originado todos os demais. É muito fácil provar que estão sofrendo de cegueira paradigmática. Para começo de conversa, nada nasce já clássico. A música não surgiu como música clássica. Primeiro nasceu a música primitiva que foi origem de todas as outras até que, muito tempo depois, apareceu a música clássica. A dança é outro exemplo eloquente. Primeiro surgiu a dança primitiva que deu origem a todas as outras modalidades e precisou consumir milhares de anos até chegar a um tipo chamado dança clássica. Nada nasce já clássico. E assim foi com a nossa tradição ancestral. Inicialmente, nasceu o Yôga Primitivo, Pré-Clássico, pré-ariano, pré-vêdico, proto-histórico. Ele precisou se transformar durante milhares de anos para chegar a ser considerado Clássico. Provado está que o Yôga Clássico não é o mais antigo, consequentemente, não nasceram dele todos os demais – o Pré-Clássico, por exemplo, não nasceu dele.

Além dessa demonstração, nas escavações em diversos sítios arqueológicos foram encontradas gravações em selos de pedra com posições de Yôga muito anteriores ao período clássico. Textos que precederam essa época já citavam o Yôga.

É interessante porque, ao mesmo tempo em que todos os autores afirmam que o Yôga tem mais de 5000 anos de existência, a maioria declara que o mais antigo é o Clássico, o qual foi surgir apenas no século terceiro antes da Era Cristã, criando uma lacuna de 3000 anos, o que constitui incoerência, no mínimo, em termos de matemática!

Mas como doutos escritores e Mestres honestos puderam cometer um erro tão primário?

Acontece que a Índia foi ocupada pelos áryas, cujas últimas vagas de ocupação ocorreram a cerca de 1500 a.C. Isso foi o golpe de misericórdia na Civilização do Vale do Indo, de etnia dravídica. Conforme registraram muitos historiadores, os áryas eram na época um povo nômade guerreiro sub-bárbaro. Precisou evoluir mil e quinhentos anos para ascender à categoria de bárbaro durante o Império Romano. A Índia foi o único país que, depois de haver conquistado a arte da arquitetura, após a ocupação ariana passou séculos sem arquitetura alguma, pois seus dominadores sabiam destruir, mas não sabiam construir, já que eram nômades e viviam em tendas de peles de animais.

Como sempre, “ai dos vencidos”. Os arianos aclamaram-se raça superior (isto lembra-nos algum evento mais recente envolvendo os mesmos arianos?) promoveram uma “limpeza étnica” e destruíram todas as evidências da civilização anterior. Essa eliminação de evidências foi tão eficiente que ninguém na Índia e no mundo inteiro sabia da existência da Civilização do Vale do Indo, até o final do século XIX, quando o arqueólogo inglês Alexander Cunningham decidiu investigar umas ruínas em 1873. Por isso, as Escrituras hindus ignoram o Yôga Primitivo e começam a História no meio do caminho, quando esse nobre sistema já havia sido arianizado.

Tudo o que fosse dravídico era considerado inferior, assim como o fizeram nossos antepassados europeus ao dizimar os aborígines das Américas e usurpar suas terras. O que era da cultura indígena passou a ser considerado selvagem, inferior, primitivo, indigno e, até mesmo, pecaminoso e sacrílego. Faz pouco menos de quinhentos anos que a cultura européia destruiu as Civilizações Pré-Colombianas e já quase não há vestígio das línguas (a maioria foi extinta), assim como da sua medicina, das suas crenças e da sua engenharia que construiu Machu Picchu, as pirâmides da América Latina, os templos e as fortalezas, cortando a rocha com tanta perfeição sem o conhecimento do ferro e movendo-as sem o conhecimento da roda.

Da mesma forma, na Índia, após 3500 anos da ocupação ariana, não restara vestígio algum da extinta Civilização Dravídica. O Yôga mais antigo? “Só podia ser ariano!” Descoberto o erro histórico há mais de cem anos, já era hora de os autores de livros sobre o assunto pararem de simplesmente repetir o que outros escreveram antes dessa descoberta e admitirem que existira, sim, um Yôga arcaico, Pré-Clássico, pré-vêdico, pré-ariano, que era muito mais completo, mais forte e mais autêntico, justamente por ser o original.

De fato, uma vez que a opinião tinha um bom número de vozes que a aceitavam, os que vieram depois supuseram que só podia ter tantos seguidores pelo peso concludente de seus argumentos. Os demais, para não passar por espíritos inquietos que se rebelam contra opiniões universalmente aceitas, são obrigados a admitir o que todo o mundo já aceitava. Daí para a frente, os poucos que forem capazes de julgar por si mesmos se calarão. Só poderão falar aqueles que sejam o eco das opiniões alheias, por serem totalmente incapazes de ter um juízo próprio. Estes, aliás, são os mais intransigentes defensores dessas opiniões. Estes odeiam aquele que pensa de modo diferente, não tanto por terem opinião diversa da dele, mas pela sua audácia de querer julgar por si mesmo, coisa que eles nunca conseguirão fazer e estão conscientes disso. Em suma, são muito poucos os que podem pensar, mas todos querem dar palpite. E que outra coisa lhes resta senão tomar as opiniões de outros em lugar de formá-las por conta própria? Como isto é o que sempre acontece, que valor pode ter a voz de centenas de milhões de pessoas? Valem tanto quanto um fato histórico que se encontre registrado por cem historiadores, quando, na verdade, todos se copiaram uns aos outros, e tudo se resume, em última análise, a um só testemunho.”

Schopenhauer,
citando Bayle em Pensées sus* les Comètes (o negrito é nosso).

* Como alguns leitores corrigiram sus para sur, inserimos aqui a explicação do dicionário Petit Robert de la langue française: Sus [sy(s)] adv. Xe; du latin susum, variante de sursum “en haut” 1. vx Courrir sus à l’enemi, l’ataquer

quarta-feira, 9 de setembro de 2009 | Autor:

Em algumas cidades aqui no Brasil, comemora-se em 15 de outubro o Dia do Professor, noutras, o Dia do Mestre. No final, quer dizer a mesma coisa, pois refere-se basicamente ao “Mestre-escola”, termo que já não se usa para designar o professor primário. Por extensão, professores de todos os graus e de todas as disciplinas são cumprimentados.

Assim, quero cumprimentar a todos os instrutores, professores e Mestres da Nossa Cultura. Você, que ensina o nosso código comportamental, está mudando o mundo e escrevendo a História. Você está salvando vidas. Está tornando as pessoas mais felizes, mais bonitas, mais prósperas, mais cultas, mais educadas. Você está melhorando o mundo!

Este dia é seu. Que seus alunos celebrem este dia como você merece.

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terça-feira, 8 de setembro de 2009 | Autor:

Entrevista realizada com o jornalista António Mateus
transcrita por Alexandre Montagna e simultaneamente por Renata Coura e Maicon, com a colaboração de Caio,
Priscila Ramos, Raffa Loffredo, Taline Mendes, Rômulo 
Justa, Alessandra Filippini

 

Mestre, a sua cultura promove um indivíduo mais lúcido, mais consciente, mais interventivo na sociedade. É isso?

A proposta é esta. A proposta é que através de um conjunto de técnicas e um conjunto de conceitos nós possamos levar uma pessoa comum a um estado de consciência expandida. Agora se isso vai ser obtido ou não, vai depender de uma quantidade de fatores. Entre eles, a própria genética do indivíduo. E, da parte controlável, a dedicação, o investimento de tempo na prática dessa filosofia. E também o ambiente onde a pessoa vive. Porque vai depender muito da bagagem cultural que ela traz, da profissão que ela exerce, da idade com a qual ela começou. Então é uma constelação de fatores.

É possível esculpir um indivíduo diferente, mais interventivo na sociedade?

Cada indivíduo é uma realidade diferente. Então, as próprias técnicas, por exemplo, de oxigenação cerebral, vão reagir diferentemente de um indivíduo para o outro.

Mas o senhor tem uma intenção, tem um destino que quer cumprir no esculpir desse indivíduo?

Sim. A meta que nós queremos alcançar é conceder a essa pessoa um estado de hiperconsciência, um estado de megalucidez. Que, na verdade, é a direção na qual a humanidade esta caminhando.

Quando as sociedades dos nossos dias não têm um perfil nem de indivíduo nem de sociedade em si, a sua cultura pode ser a proposta que falta. Esse indivíduo, obviamente diferente, mais lúcido, mais consciente, que impacto real é que ele tem na sociedade? Em que ele pode fazer a diferença?

Quando a pessoa tem mais lucidez, a primeira coisa que ocorre é que ela vai exercer melhor o seu trabalho, a sua posição na família, o seu engajamento em qualquer ideal, seja ele político, humanitário, filantrópico, artístico, seja lá qual for. E, além do mais, ele se sente integrado. Porque quando o indivíduo ainda não tem uma consciência plena, ele acha que o mundo se divide entre eu e os outros. No momento em que a consciência se expande, ele percebe que não existe essa coisa de eu e os outros. Somos todos uma só coisa, estamos todos interligados, não apenas dentro da espécie humana, mas entre todas as espécies e com o próprio planeta, com o próprio cosmos. E esse estado de consciência expandida é alcançável. Mas, normalmente, quando a pessoa menciona a sua pretensão, a sua intenção de conseguir tal estado de consciência, uma outra pessoa que não imagine o que é isso, que não tenha lido a respeito, que não tenha estudado, que não tenha se esclarecido, pode supor um ideal inalcançável, pode supor uma fantasia. Acontece que muita gente já logrou esse estado de consciência. Então é realidade.

Esse estado de hiperconsciência, de lucidez, traduz-se em quê no dia-a-dia?

No dia-a-dia, traduz-se em uma participação objetiva, que nós chamamos de ação efetiva. Porque muita gente tem iniciativas, mas poucas têm acabativas. Então, uma das coisas que uma consciência maior, que uma lucidez maior, nos concede, é perceber que não adianta apenas o discurso, não basta a intenção, é preciso levar a cabo. É necessário ter a iniciativa, a acabativa, o resultado final, para a vida deste indivíduo, para a sua família, para os seus amigos, para os seus desamigos, para toda a sociedade, para a responsabilidade social, para responsabilidade ambiental, ou seja, ele vai expandido o seu campo de atuação, ele deixa de ser um indigente, ele deixa de ser um indivíduo que não é ouvido, que não tem voz, nem voto. Ele passa a ser uma pessoa que atua e que modifica o mundo em que vive. E como essa pessoa, em geral, é uma pessoa que tem nobres ideais, ao modificar o mundo em que vive, modifica-o para melhor.

Como é que a sua cultura faz isso sobre o indivíduo? Que instrumentos, que ferramentas é que dispõe para fazer isso?

A Nossa Cultura. Eu chamo de “Nossa Cultura” com N maiúsculo e C maiúsculo, porque é um conjunto de conceitos, é uma filosofia, é um sistema de vida. Essa Nossa Filosofia, essa Nossa Cultura, propõe isso através de uma reeducação comportamental progressiva e espontânea. Não somos a favor de doutrinação, portanto, doutrinação está excluído. Não somos também a favor de repressão. Sem doutrinação e sem repressão, o melhor caminho é o exemplo. É a convivência. É o que nós chamamos de egrégora. É conviver com o poder gregário, de um grupo que já está dedicado a esses ideais. E, a partir daí, os conceitos são incorporados com muito mais facilidade. E as técnicas, isso aí já é uma questão de dedicação individual, de praticar, de executar tais técnicas.

Pode-se comparar esse tipo de intervenção como quem afina uma orquestra? Vamos reunir os violinos, as flautas, e pô-los todos a prestarem um comportamento numa mesma direção?

Certamente que é. Nós vamos criar uma sincronia entre todos os elementos que nos constituem um ser humano. Não apenas corpo e mente, mas corpo, energia (bioenergia), emocional, a mente, o intuicional. Enfim todos os elementos que vão funcionar, como você muito bem exemplificou, como uma orquestra. E depois, nós vamos extrapolar para além do indivíduo, que é o ideal. Não ficar dentro do seu pequeno mundinho, do seu universo pessoal. Então, extrapolando, essa orquestra passa a ser também a orquestra da família, a orquestra do trabalho que ele executa, a orquestra da sua arte, de todos os elementos, pessoas, indivíduos, circunstâncias, daquele ambiente. E quando você vai ampliando seu campo de atuação, você chega a considerar que o mundo é muito pequeno, porque você alcança as pessoas, através de veículos diversos. Outrora, era através da escrita, era através de livros, antes deles, os pergaminhos. E hoje, nós conseguimos atingir as pessoas por veículos eletrônicos, nós conseguimos estar num momento escrevendo no nosso computador e ao mesmo tempo sendo lidos, sendo acessados, por pessoas em todo planeta e brevemente até fora dele.

Carl Sagan defende, pelo oposto, um sujeito que é contaminado pela sociedade, que é poluído pela sociedade. A Sua Cultura promove o oposto. Promove um indivíduo ativo, consciente, interventivo.

Eu concordo com ele. A sociedade corrompe o indivíduo. Mas, se o indivíduo tiver o poder de descorromper a sociedade e isso parte da proposta de você realmente perceber que a sociedade tem esse poder, que todo o ambiente cultural em que uma pessoa vive, esse ambiente tem poder sobre. Nós somos produtos, nós somos frutos do ambiente. Somos frutos da cultura em que fomos educados, na qual vivemos. Se tivermos consciência disso, desse poder, do ambiente nos corromper e nos recusarmos a aceitar passivamente essa corrupção, então aí nós invertemos o processo.

Essa contra-corrente do sujeito ativo, e não passivo, entronca naquilo que referi ao princípio, que é a perspectiva do indivíduo mais lúcido, mais consciente. Essa lucidez também tem a ver com o indivíduo aperceber-se de como a influência exterior lhe pode ser danosa, é isso?

Sim. Mas é preciso lembrar que essa proposta, embora revolucionária em termos comportamentais, não é agressiva. Agressiva, no mal sentido. Não é violenta. Ou seja, nós não estamos indo contra o que já está estabelecido, nós não queremos que as pessoas simplesmente mudem e adotem a Nossa Filosofia. A proposta é que alguns indivíduos, que já estão pensando dessa forma, não se sintam um avis rara. Que esses indivíduos sintam que há outros que pensam da mesma forma. E, então, nós podemos nos reunir, comungando de um mesmo ideal e compartilhar as idéias, os conceitos, as práticas, a maneira de viver, a maneira de constituir amizades, constituir relações afetivas, de uma forma que nós chamamos, que nós consideramos, mais civilizada, que é muito mais amorosa, que é muito mais tolerante.

Porque Vossa Cultura não traz só uma proposta interior, do indivíduo, é também na forma como ele se relaciona com os seres humanos a sua volta, com o mundo físico a sua volta. Há uma nova estética e uma nova ética?

Sim, porque o conceito de um interior pressupõe que haja uma dicotomia entre interior e exterior. E a Nossa Cultura não entende o indivíduo, nem o mundo, como uma coisa separada. Um corpo e alma, por exemplo. Um antagonismo entre o espiritual e o natural, o físico, o corporal. Então, nós entendemos que é uma coisa só. Que estando integrados, nos conseguimos realizar muito mais e muito melhor, muito mais bem feito o nosso trabalho.

Quando os governos dos nossos dias pouco ou nada se preocupam com o perfil de indivíduo a definir, com o perfil de sociedade a alcançar, a não ser no plano puramente material, do acerto de contas financeiras, é preciso haver um novo olhar sobre a qualidade do indivíduo. E a sua proposta de Cultura responde exatamente a isso. É um sujeito mais lúcido, mais ativo, e que sabe para onde ele quer caminhar?

Exatamente. E sempre sob a égide da tolerância. Porque, se não for assim, nós estamos correndo o risco de inventar uma religião nova, que não é absolutamente a proposta. É uma proposta educacional, uma proposta cultural, uma proposta de levar o indivíduo a um patamar mais elevado de civilidade, de cultura, de educação, de senso artístico, de sensibilidade, e, como você disse antes, de ética e de etiqueta também. A etiqueta é uma pequena ética. Quer dizer, nós temos a grande ética, e nós temos aquela ética, aquela etiqueta aplicada ao dia-a-dia, no relacionamento dentro de uma sociedade específica, na qual nós temos que nos adaptar. Porque quando nós fazemos uma proposta abrangente como esta, nós temos que considerar que existe uma cultura cristã, mas existe uma cultura hindu, existe uma cultura judaica, existe uma cultura islâmica, e nós não podemos criar uma proposta que se adapte apenas a uma dessas culturas.

Mestre, isso muda completamente a dinâmica do mundo a nossa volta. Que possibilidades é que se abrem?

A possibilidade, eu vejo que é grande. Agora, a realização é sempre lenta, porque a mudança de paradigmas é muito difícil para o ser humano. Nós fomos construídos, nós fomos projetados, de uma forma que, a partir do momento em que aprendemos um determinado conceito, um determinado código de procedimento, depois nós não conseguimos mudar. É muito difícil mudar. Então, quando nós transmitimos esse ensinamento, temos que nos lembrar que é um ensinamento basicamente para um público jovem, adulto jovem. Adulto jovem, que é aquele que está na ativa, que é aquele que está na dinâmica empresarial, política, artística, enfim, em qualquer área. E essa pessoa tem condições ainda de processar uma transmutação na sua maneira de ser.

Martin Luther King legou-nos um sonho que ele tinha – “I have a dream”. O John Lennon pintou com música – “Imagine all the people”. Nelson Mandela trocou a sua liberdade por esse sonho. O visionário DeRose, como é que configura esse sonho?

Eu não sei se diria visionário. Porque o nosso trabalho é muito terra-terra, é muito objetivo, vai diretamente ao indivíduo no mundo em que ele vive. Ou seja, sem subjetividades, sem teorizações, sem suposições. Ideais, sim. Mas dentro de um cuidado muito grande, como eu disse antes, para que esses ideais não se tornem radicais. Radicais, até certo ponto, está bem. Provém de raízes. Nós temos raízes. Radical, até certo ponto. Mas um fanatismo tem que ser evitado. Daí o meu cuidado com a palavra visionário. Mas a intenção é justamente conduzir estes conceitos a que o indivíduo possa aplicá-los realmente. Que não seja apenas uma linda proposta, um lindo discurso, mas que ele realmente chegue lá na sua empresa e faça isso funcionar, modificando a estrutura da empresa, modificando a administração da empresa, tornando cada funcionário, cada colaborador seu, um indivíduo que tem um valor, que tem um potencial, que tem uma criatividade e que é um ser humano. Não no sentido apenas de colocar o funcionário e o empresário como forças oponentes num cabo de guerra, mas colocando todos puxando na mesma direção, que é o progresso individual e, em seguida, o progresso da sociedade.

Quando o senhor imagina, vamos pegar no “Imagine” do John Lennon, quando o senhor sonha um futuro, sonha o quê? Vê o que no fim dessa viagem?

No “Imagine” eu vejo um credo. Porque aquilo que ele propõe é realmente revolucionário. Até me causa espécie que não tenha havido reações mais virulentas contra aquelas propostas, porque aquilo é lindo, mas ao mesmo tempo, ele fala com relação ao indivíduo superar as limitações de pátria, as limitações de fronteiras. Isso obviamente não agrada nada a maior parte da população, dos governantes, dos poderes constituídos. Querer que todos sejamos um só povo, uma única humanidade. E “no religion too”. Também todas as religiões, provavelmente reagiriam de uma forma um tanto quanto reservada. Mas não aconteceu isso. A música é linda e o que nós vemos é que a sua letra é aceita pela população em geral, inclusive pelos governantes, pelos poderes constituídos, pelas religiões em geral. As pessoas gostaram daquilo porque ele soube dizê-lo. E também provavelmente gostaram antes do John Lennon estar mais ativista. Quando ele chegou em Nova York, a coisa ficou mais agressiva.

Mas o senhor quando mobiliza os seus instrutores, a sua família, a sua egrégora DeRose, está a configurar um futuro. Onde é que é o horizonte que configura para esta sua passagem pela vida?

Eu vejo, a curto prazo, pessoas mais felizes e mais saudáveis, com uma qualidade de vida melhor. Porque isto é o que realmente as nossas técnicas proporcionam. Em primeiro lugar, maior qualidade de vida. A médio prazo, eu vejo prosperidade. Porque uma pessoa que tem melhor qualidade de vida, uma pessoa que tem mais tolerância, que sabe lidar com o ser humano, que sabe lidar com seus superiores hierárquicos ou com seus comandados, sabe lidar com seus clientes, com seus fornecedores, sabe lidar com seus amigos e com a sua família, com as suas relações afetivas. Essa pessoa está no controle. Essa pessoa converte-se em um líder. Um líder sereno, carizmático dentro do seu ambiente, do seu respectivo ambiente. Então, a médio prazo, isso proporciona estabilidade. Estabilidade na relação afetiva, estabilidade na família, estabilidade no trabalho. A conseqüência é prosperidade. Então, a médio prazo, eu vejo essa nossa família, ou seja, esses nossos praticantes, e isso já tem acontecido, nós já estamos nessa caminhada há meio século, há 49 anos. Ano que vem (2010), 50 anos, portanto, eu vejo, acompanhando o que de fato tem acontecido. As pessoas começam a conquistar a estabilidade, a prosperidade, mais felicidade, maior expectativa de vida.

Essa expectativa de vida, conferida, inclusive, pelos bons hábitos que são propostos. Porque essa Nossa Filosofia ensina a não utilizar drogas, a não utilizar álcool, não utilizar fumo. E buscar hábitos saudáveis. Isto, muito longe de tornar a vida sem graça, torna a vida muito mais interessante, porque aumentando a sua lucidez, se você não está sob influência de droga alguma, inclusive o álcool é uma droga, droga legal, mas é droga, é o mais poderoso dos psicotrópicos. Então se você não esta sob o julgo de nenhuma dessas substâncias tóxicas, que interferem com a consciência, essa pessoa tem mais felicidade, mais lucidez, ela percebe o mundo de uma outra maneira e, consequentemente, o mundo e a vida ficam muito mais divertidos. Essa pessoa fica mais feliz de fato. E, a longo prazo, a proposta é aquele estado de consciência expandida que nos conduzirá ao autoconhecimento.

Esse é o objetivo a nível individual?

A nível individual o autoconhecimento. E, se um dia, a humanidade conseguir, toda a humanidade, chegar a esse estado, nós vamos ter uma humanidade muito diferente da que temos hoje, porque hoje nós partimos para soluções drásticas. Nós sempre observamos que, em um mesmo momento, N nações estão em conflitos armados. Então se nós conseguíssemos que, pelo menos, senão toda a humanidade, pelo menos, aqueles que têm o poder de decisão, aqueles que podem criar leis, aqueles que podem declarar guerras, se todos esses estivessem em um estado de consciência melhor, mais expandido, essa hiperconsciência, nós teríamos um mundo muito mais harmonioso. Porque hoje, nós vemos que, muitas vezes, em muitos países, o governante não quer o bem-estar e a evolução do povo. Até porque, se o povo ficar mais lúcido, é capaz de tirá-lo do poder. Então, nós estamos num momento que, considerando o nosso ideal, que é para o futuro, nos não estamos em um momento bom. E a demonstração disso justamente são esses conflitos que nos observamos em várias regiões do globo. Mas se, passo a passo, gradualmente, sem nenhuma intenção de converter pessoa alguma, mas se, aos poucos, isso der certo, no sentido de uma expansão para a população em geral, eu acredito que realmente nós vamos ter, num futuro, um mundo muito diferente. Hoje já está diferente se nós pensarmos, se nós compararmos a qualidade de vida e o nível de consciência, não apenas de cultura, não apenas de informação, não apenas de ilustração, mas o nível de consciência mesmo da maior parte da população comparada com 200 anos, 500 anos atrás, 800 anos atrás, nós estamos numa curva ascendente.

O senhor regride aos alicerces do nosso existir no (livro) “Eu me lembro”, como quem ganha balanço em recuo para um salto. Esse salto leva-nos para onde?

Bem, em primeiro lugar, essa volta às origens vai nos levar a uma época em que, uma civilização, esse (livro) “Eu me lembro” é um conto, é uma ficção, mas que é ambientada num local, num período, numa civilização em que, até onde nos consta, pela história, pela arqueologia, essa civilização, esse povo, vivia em harmonia. O povo tinha qualidade de vida, o cidadão era respeitado. Não se encontraram construções faraônicas para o monarca, nem para o clero, mas encontraram-se casas muito confortáveis para a população. Nós estamos falando de um período proto-histórico. Um período que está imediatamente antes do surgimento dos registros históricos. E os historiadores recorreram, muitas vezes à arqueologia, para poder montar um pouco da história daquele povo. Essa época, imagine, são 5000 anos atrás, são 3000 antes de Cristo. E nessa época, nessa civilização, chamada civilização do Vale do Indo, já havia cidades extremamente bem urbanizadas, saneadas, havia as casas do povo, casas com dois andares, e mais, com átrio para ventilação interna, com a casa de banho dentro da casa, com água corrente. Mas isto, 3000 antes de Cristo, é qualquer coisa de inacreditável. Os próprios arqueólogos quando encontraram, recearam comunicar aquilo às academias de ciências, porque iam ser tidos por mentirosos. Então aquilo foi sendo comunicado muito aos poucos. Foram convidando outros arqueólogos, de outros países, a que fossem lá constatar. Porque era realmente uma civilização excepcional para a época e até comparada com algumas regiões hoje, do nosso planeta. Então, você imagina que, aquela ambientação na qual essa história, esse conto, essa ficção (o livro Eu me lembro…), se baseia, é a de um povo feliz, é de um povo saudável, é de um povo estável, é de um povo próspero, dentro dos limites do período histórico. E recuando para essas origens, são, diríamos muito próximo das origens da civilização mesma, nós aprendemos alguma coisa com eles. Coisa que foi perdida depois. Com a introdução da civilização patriarcal, aquela que era matriarcal, essa original, vamos considerar, inclusive, fazer aqui um parêntesis, as sociedades primitivas, não-guerreiras, todas elas tenderam ao matriarcalismo e as sociedades patriarcais, todas foram guerreiras. Então, só isso já estabelece parâmetros, para que nós saibamos que a sociedade patriarcal, ela precisa da guerra. Até porque, a própria estrutura patriarcal, a estrutura do macho, do homem é baseada em testosterona e isso é um perigo. Testosterona devia ser posto nas bombas que jogam na cabeça dos inimigos, porque isto é muito explosivo. Agora, a sociedade matriarcal, ela já privilegia a mãe, privilegia o carinho, privilegia o ventre, privilegia o seio, já é uma outra forma de ver o mundo, uma outra forma de administrar a família, uma outra forma de administrar o Estado. E, sem guerras, esse povo obviamente consegue dedicar seu tempo e os seus recursos econômicos, à arte, por exemplo. À dança, à pintura, à escultura. E sem repressão, porque a sociedade matriarcal, em geral, não é repressora. A sociedade patriarcal, em geral, é. Então, sem repressão, imagine para onde vão esses impulsos artísticos e culturais desse povo.

No “Eu me lembro”, o senhor recua há um passado onírico e depois transporta-nos por uma realidade mais palpável, onde aspectos tangíveis, como os instrumentos de escrita, a própria linguagem, já são mensuráveis. É quase como se fosse uma visão antropológica. Como o senhor não dá um ponto sem nó, quer nos levar para onde com esse transporte?

Aquilo ali é uma fantasia, porque nesse livro, “Eu me lembro”, o autor, que sou eu, eu conto sobre memórias de um passado, mas esse passado não é nada espiritual, é uma história. Então, levando o leitor até aquela realidade cultural, até aquela civilização, até aquela maneira de ser, eu estou propondo, estou sugerindo até mesmo um debate do indivíduo com ele mesmo, a respeito da validade daquela maneira de se relacionar com os filhos, com os pais, com os amigos, com os inimigos, com o relacionamento afetivo, com a pessoa que a gente ama. Então, talvez aquilo ali possa fazer uma contribuição. Agora, onde está a fronteira entre a fantasia, a ficção, o mito, e a realidade, isso eu deixo para que o leitor descubra.

No entanto, a segunda parte do livro, já tem um cariz quase antropológico, já não é uma ficção pura?

É. É baseada em fatos reais, porque a ficção a que eu me refiro é a historia, aquela coisa toda. Agora, o máximo possível de elementos palpáveis, de elementos reais, elementos históricos, eu utilizei para dar o alicerce, a fundamentação daquilo lá. Eu estou vendo a possibilidade de que a pessoa, primeiro seja conquistada pelo coração, porque o início do livro é muito doce, muito meigo, depois ele é romântico, e depois ele é, digamos, mais filosófico. Ele perde um pouco aquela doçura. Porque é a historia de uma pessoa que cresce. Primeiro é criança, então tem uma visão mais romântica do mundo. Depois torna-se adulto, naquela época adulto era 15 anos de idade, era a idade em que já estava apto a reproduzir, constituir família. E depois já estava um senhor de 30 anos de idade. Então aí ele já vê o mundo de uma maneira mais consistente, de uma maneira mais cuidadosa, mais prudente. E eu tento transmitir ali um pouco da Nossa Filosofia. Um pouco, porque o livro é fininho. É um dos menores livros que eu escrevi.

Pode ser menor em espessura, mas é também para nós, os leigos, que olhamos para essa Cultura, eu senti pessoalmente, que era o elemento mais provocativo, porque há varias leituras a fazer por trás.

Sim, inclusive uma leitura subversiva, no bom sentido. Uma leitura que subverte os maus hábitos e que subverte a estrutura da nossa sociedade. Não na intenção de demolir nada, mas no sentido da pessoa parar e pensar – afinal essa maneira de ser parece mais interessante! Quem sabe nós podemos adotá-la? Vamos experimentar, vamos usar isso na família, vamos usar isso com os nossos amigos.

Quando o senhor, por exemplo, promove, em um dos sútras, dos seus sútras, defender a liberdade como primeiro pilar da nossa existência e quando ela choca com a disciplina primar sempre pela liberdade.

Esse sútra bate bem nessa tecla, ele é bem categórico, veemente, com relação a isso, que a liberdade é o nosso bem mais precioso.

Mestre, no entanto, pela oposição, nós precisamos ter uma disciplina interior e existencial para defender os valores. Onde é que as duas fronteiras se cruzam?

E a continuação desse sútra, desse pensamento, é quando ele diz que se a disciplina violentar a liberdade, opte pela liberdade. Então, como é que nós vamos temperar essas duas forças, essas duas propostas? É que, a disciplina é fundamental, mas, se a disciplina deste grupo especifico, qualquer grupo que seja, um grupo político, um grupo de esporte, um clube de futebol, não importa o quê, se este grupo tem normas e estas normas, estas regras, esta disciplina me violenta, eu tenho que valorizar a liberdade, eu tenho que colocar a liberdade em primeiro lugar. Fazendo o que? Brigando contra? Não, me afastando. Não serviu para mim. Esta empresa, este colégio, este liceu, esta faculdade, este clube, não serve, porque estas normas me violentam. Então eu saio e vou procurar a minha turma. Se nós fizermos isso, ao invés de querer bater de frente, vamos conseguir ter uma vida muito melhor. E é claro que eu respeito quem pensa o contrário, porque há a opinião de que nos precisamos lutar contra. Está bem. É um outro grupo. São os dois grupos.

O senhor, por exemplo, defende a disciplina, o rigor, a farda, o vestir da camisola (da camiseta, como se diz no Brasil), e esse coletivo pressupõe uma secundarização do indivíduo. É correto isso?

Não. Isto pressupõe que isto tudo que você disse é verdade, mas não pode violentar o indivíduo. Não pode violentar a liberdade dele e tem que estar bem assentado sobre a tolerância. Se nós conseguirmos esse amálgama, que é alquímico, se nós conseguirmos isso, encontramos o equilíbrio ali do fio da navalha. Porque realmente é um equilíbrio sobre um caminho muito estreito. Uma brisa faz com que você caia para o lado, para o extremismo da intolerância, da disciplina que tem que ser cumprida a todo custo, ou para o outro lado, da tolerância excessiva, da complacência, da magnanimidade, no mal sentido. Então é o caminho mesmo do centro, é o caminho do meio que é muito estreito.

Sua Cultura trabalha, por outro lado, sobre os extremos. Nós devemos trabalhar sobre aquilo que são as nossas dificuldades, os pontos menos bons, ou os pontos que são mais positivos?

Não sei se eu colocaria dessa forma. Porque colocando assim nós, de uma certa forma, cristianizamos um pouco essa coisa do bem e do mal. E a nossa proposta é a de que tenhamos sempre a consciência de que bem e mal são sempre relativos. Você esta fazendo errado. Mas errado em relação a que? Com relação a que momento? Richelieu disse certa vez que ser ou não ser um traidor é uma questão de datas. Então é um pouco isso, do certo e do errado. Em que sociedade, em que religião isto é certo ou isto é errado? Você entra numa igreja católica e tira o chapéu em sinal de respeito. Aí você entra numa sinagoga e coloca-o, em sinal de respeito. Eu me lembro de que uma vez nós fomos visitar um templo sikh, na Índia, e eles pediram para cobrirmos a cabeça. Até a câmera que eles mesmos usavam para gravar o ritual, a câmera era coberta em sinal de respeito, era coberta com um tecido branco. Então tudo é convenção. E nós temos que estar conscientes disso cada vez que nos deixarmos seduzir, ou enfim, escorregar um pouco para o lado da cultura que nós recebemos que é a do bem e do mal. “Este é o seu lado mal”. “Isto foi um erro cometido”. Calma, não é bem assim. É melhor colocar: isto talvez não tenha sido conveniente, neste momento, ou neste grupo. Mas não que seja mal, ou que seja errado. E outro sútra diz que mal é o nome que se da à semente do bem. Porque tudo o que você passou na vida de “mal”, você pode observar que, em seguida, ou já, ou logo depois, produziu um fruto muito bom.

Realizando a lucidez do cidadão consciente, o indivíduo lúcido, na viagem para o estado de hiperlucidez, nem que seja no patamar, esse sujeito tem que ter uma visão para onde é que caminha. Como quem vai fazer uma corrida de fundo, ele tem que saber, para se auto-motivar, para onde é que ele caminha. A Sua Cultura, como é que o impregna desse sentido objetivo?

Nós procuramos ver como se fosse uma viagem linda que você está fazendo de comboio e que sabe que aquilo vai a um determinado ponto. Vai a um determinado destino. Mas você olha a paisagem linda do lado de fora, você conversa com um amigo do lado de dentro, você vai até o vagão refeitório, restaurante, delicia-se com uma comidinha, recosta, dorme um pouquinho. Você usufrui. Você desfruta do prazer da viagem. E, assim, chega mais rápido. E se o indivíduo ficar só pensando: eu tenho que chegar; o meu destino, o meu destino, o meu destino. A viagem fica desagradável e parece mais longa. Então, com relação a nossa meta, a recomendação é: não se preocupe com a meta. Vamos usufruir da comunidade, das pessoas. As pessoas que, em geral, seguem este sistema, são pessoas interessantes, são pessoas bonitas, por dentro e por fora, são pessoas educadas, são pessoas sensíveis, são pessoas que tem assunto para conversar com qualquer pessoa.

No entanto, Mestre, quando nós vemos, por exemplo, uma sociedade conservadora, que vamos imaginar, por exemplo, defende que a mulher deve ter um papel na sociedade, que deve viver para o marido, para os filhos, para as aparências, o estado de lucidez permite a ela derrubar essa fronteira. A sociedade conservadora não hostiliza imediatamente essa lucidez?

Não, porque nós não criticamos essa postura tradicional em muitas sociedades hoje vigentes no mundo. E como a Nossa Filosofia, ela não tem intenção de catequizar, não é uma coisa que queira se expandir e, enfim, tomar seguidores de outros sistemas filosóficos, muito menos religiosos, então a reação nunca foi negativa, nunca houve uma oposição, uma resistência.

Mas pode haver a nível das células familiares. Por exemplo, se eu desconheço determinada luz, sinto-me perdido no meu corredor, no meu túnel de sombra e, de repente, aparece uma luz no fundo desse corredor, que pode ser, suponhamos, a Sua Proposta, e eu, de repente, passo a caminhar com outro alento nessa direção. E se o túnel de sombra é criado pela estrutura conservadora que a sociedade foi montando a minha volta, eu torno-me rebelde. Pelo menos caminho numa direção oposta. Essa cisão não cria anticorpos?

Normalmente ocorre o seguinte. Quando num casal, numa estrutura familiar, um dos dois, só um, adota esta filosofia, é como se só um dos dois adotasse um partido político, contrário ao do outro cônjuge, ou uma religião, contrária à religião do outro cônjuge. E pode gerar um momento de dificuldade de comunicação. Então o que nós recomendamos é o seguinte: se você evoluiu, se você adotou uma filosofia que tem uma pretensão a uma evolução maior, uma civilidade maior e tudo, uma lucidez maior, quem está errado é você. Porque os dois se casaram dentro de uma determinada visão que um tinha do outro, e cada um gostava do outro como ele era. Criou-se uma regra, criaram-se regras neste jogo, e você mudou as regras do jogo, no meio do jogo. Quem está errado não é o cônjuge, que está reagindo mal, quem está errado é você. Então você tem que ter mais paciência com o outro, tem que ter mais tolerância, tem que tentar içá-lo sem forçá-lo a isso. Talvez pelo exemplo, talvez pela sua forma de agir, mostrando que hoje você é uma pessoa muito melhor pra ele ou pra ela.

E se a outra pessoa preferir viver em outro tipo de referências. Por exemplo, quiser viver para as aparências, e não para o conteúdo do bolo?

Tem sido raro. Normalmente, se houver esse processo que eu mencionei, de tolerância, de paciência e de sedução, cativando a outra pessoa ao invés de cobrando dela uma postura, pelo que nós temos observado nestes anos, nestas décadas, é que, no geral, o cônjuge acompanha. Porque ele gosta do que ele está vendo. Seja marido, seja mulher, nota que o outro melhorou. Melhorou como pai ou mãe, melhorou como marido ou esposa, melhorou como amante, melhorou como companheiro, como amigo. Então, em geral, ele acaba vindo junto.

No (livro) “Encontro com o Mestre”, o pós-imberbe DeRose encontra-se com o DeRose já maduro, já Mestre, já consciente. O que é que o Mestre já consciente diria hoje ao DeRose pós-imberbe? Seria a mesma coisa que disse no livro?

Iria dar o mesmo desencontro do que eu expus no livro, porque ali era o autor com 58 anos, conversando com o mesmo aos 18. Foi assim, também, mais um conto, mais uma ficção, em que o DeRose de 18 anos aparece na vida do DeRose de 58. E ele então discorda, ele discute, ele debate. Ele diz: mas não pode ser assim; eu não concordo com isso; isto não pode ser. E o diálogo entre os dois, entre o jovem idealista de 18 e o homem vivido de 58, aquilo ali pretende dar ao leitor um equilíbrio entre as duas opiniões, porque muitos dos nossos leitores têm 18 e 20 e 25 e 30, e muitos dos nossos leitores têm 58 e 60 e 70 e 80. Então são dois universos completamente diferentes, e o livro procura casar esses dois universos, mostrando que ambos estão corretos, e que é muito uma questão de ótica.

Os dois equilibram-se? São uma mesma coisa? São dois olhares sobre a mesma coisa? Ou um é uma evolução sobre o outro?

Eu diria que, na verdade, os dois têm seus preconceitos, seus pré-conceitos. Ambos discriminam e ambos procuram não discriminar. Ambos tentam não ter preconceitos e aí, este mais velho aprende com o mais novo, e o mais novo aprende com o mais velho. A idéia básica desse livro é essa.

Nós tendemos a acrescentarmos na diferença. Normalmente as pessoas lidam muito mal com o que lhes é diferente, defendem-se, rejeitam, oprimem, suprimem, em vez de somarem-se na diferença.

É. E essas diferenças são muito importantes. Porque, imagine o seguinte: se todos os meus amigos só me fizessem elogios, eu estaria cercado por bajuladores, como alguns monarcas no passado. O que eu vou aprender com isso? Eu vou estar errando e todos vão estar dizendo que eu estou acertando. Não vão me ajudar em nada. Mas o meu crítico, os críticos de plantão, eu ainda nem cheguei a errar e eles já estão me apontando o dedo. Então, quem está me ajudando mais? Quem está me ajudando mais é aquele que se considera inimigo, mas que na verdade, é mais amigo do que os meus amigos, porque ele me mostra o lado sombrio que eu estou cometendo ou estou prestes a cometer. Ele aponta o erro e eu posso corrigir esse erro. Eu sempre comparo o amigo e o inimigo a uma árvore, em que as raízes, que estão nas trevas, que crescem pra baixo, são os inimigos, porque estão nas sombras, mas sem os quais a árvore não fica em pé. A árvore precisa das raízes, e os inimigos são as raízes. E os amigos são as flores, são os frutos lindos, maravilhosos, mas sem as raízes, não existiriam.

O senhor, neste “Tratado de Yôga”, que acabou de ser lançado em Lisboa dá logo o exemplo até na dedicatória do livro, porque ele dedica não só a pessoas que o senhor admira pela luz, mas também por uma pessoa em particular, que o obrigou… Pode nos falar um pouco disso?

Pessoas que às vezes, por implicância, até por não conhecer bem o outro lado, a outra verdade, atacam, difamam, agridem, injuriam, excluem. Então, o que acontece: você pode se considerar um perseguido, você pode se considerar uma pessoa infeliz, pode ficar ressentido. Ou você pode perceber, numa visão de grande angular, que aquilo ali foi extremamente importante e você pode ser grato àquela pessoa, mas com sinceridade. Não adianta ser grato com hipocrisia. “Não, sou muito agradecido aos meus inimigos”, mas aqui dentro… não é. Então, não. Tem que ser uma coisa, obviamente, tem que ser uma coisa autêntica. E ali é muito sincero. Se aquele senhor não tivesse feito toda aquela perseguição, que ainda ocorre hoje, e não tivesse gerado todo um fã clube dele contra o nosso trabalho, hoje o nosso trabalho seria imperceptível. O cristianismo só ficou conhecido porque foi perseguido, senão teria sido uma pequena seita judaica ou essênica, que teria desaparecido logo depois. Mas a perseguição deu visibilidade e, a partir daí, pessoas que concordavam com aquele ponto de vista, fizeram com que se estruturasse e se eternizasse.

Isso não é o que nós entendemos ou que a Sua Cultura descreve como ahimsá? Não é o trocar o fel por mel, é algo muito mais profundo?

Eu acho que é mais profundo. Agora, nesse conceito, do ahimsá, que é a não agressão proposta por Gandhi. Ahimsá, nós aplicamos não exatamente da forma como Jesus propôs, que era oferecer a outra face, não é exatamente assim, mas é de uma outra maneira. Por exemplo, quando uma pessoa tem uma atitude agressiva. Nós precisamos ter consciência. Se você tiver maturidade e auto-estima, você tem condições de compreender que aquela pessoa está sendo agressiva porque ela tem medo. Uma pessoa é agressiva quando teme.

Se aqui entrar a minha cachorrinha, a Jaya, que é a minha weimaraner vegetariana, abanando o rabinho, nós vamos dizer: “que bonitinha, vem cá, deixa eu fazer um carinhozinho.” Mas, se entrar aqui, rosnando, mostrando os dentes, você logo diz: “tira esse bicho daqui senão eu dou uma pedrada nele.” Porque você ficou agressivo? Ficou agressivo porque sentiu medo. E assim é em todas as situações. Se você prestar atenção, analisar com imparcialidade, você vai notar que, todos os momentos em que uma pessoa ficou agressiva é porque ela sentiu medo, ela se sentiu ameaçada, ela entrou em defensiva.

Então alguém foi agressivo com você, você pode, ou ter uma reação imatura, que é assim: você foi agressivo comigo, devolvo-lhe a agressividade. Ou você pode ter uma reação ponderada, uma reação da pessoa que tem auto-estima e que tem maturidade. Você foi agressivo comigo, eu tenho que compreender que você se sentiu agredido por mim, mas eu não tive a intenção de agredi-lo; você se sentiu ameaçado por mim, mas eu não tive a intenção de ameaçá-lo; você talvez tenha tido um péssimo dia; você talvez tenha um péssimo casamento; não sei, talvez você tenha dificuldades, problemas na sua vida. E eu vou devolver mais agressividade? Isso não vai me ajudar. Não vai ajudar a nossa relação. Se for uma relação de negócios, se for uma relação de amizade, não importa o que. Devolver agressividade é tentar combater o ódio com mais ódio. Tentar combater fogo com gasolina. Então isso não ajuda.

Eu gostei muito da sua frase que é devolver fel com mel. É interessante, porque é mais ou menos isso. De fato, é mais ou menos. Porque se a pessoa agrediu e você lhe dá um sorriso, um sorriso sincero, porque a pessoa percebe no seu olhar, na sua expressão facial, o cinismo é detectável, instintivamente, por qualquer pessoa. Se você realmente lhe ofereceu um semblante descontraído, um sorriso sincero, aquela agressividade se reduz. Mas se reduz drasticamente.

Eu me lembro de uma situação em que houve encontro de duas linhas filosóficas de nomes quase idênticos, mas que são antagônicas, e até por isso mesmo são antagônicas, porque quanto mais semelhantes são, mais elas têm dessintonias. Então, nesse encontro, entre as duas filosofias, uma senhora, professora da outra linha veio caminhando na minha direção, com o dedo em riste e disse: “DeRose, você isso, você aquilo!” E começou a me insultar em altos brados, com a intenção mesmo de que todos escutassem. E todos pararam no evento, no congresso, para ver qual seria a minha reação. Afinal será que tudo isso que ele diz, afinal é mentira? Como será que ele vai reagir? Ele vai dizer umas boas a essa senhora? Vai gritar com ela? Talvez agredi-la? Vai virar-lhe as costas e sair andando como um mal educado? Ou vai ficar parado ouvindo, deixando que ela agrida, fale,fale, fale, insulte, insulte, insulte? Qual será a reação?

E aí, que reação eu teria tido? Imagine lá. Tempo para pensar.

Pronto. A reação foi: agarrei a velinha, abracei a velhinha, e quando eu soltei, ela já não tinha mais agressão nenhuma, não tinha insulto nenhum pra dizer. Quando eu soltei, ela olhou para mim e disse: “Ai DeRose, você hein?” Pronto, tirou o fel com o mel do abraço, sem dar a outra face, sem ficar simplesmente, passivamente, escutando as agressões dela, e sem devolver as agressões que, afinal, não ajudaria nada a minha relação com ela, não ajudaria nada minha imagem com os outros que estavam assistindo. E também não me ajudaria comigo mesmo, porque naquela noite eu não teria dormido tão bem.

Isso pressupõe o tal indivíduo que a Sua Cultura, a Cultura DeRose, pretende esculpir, do tal indivíduo lúcido, que se apercebe de uma forma como quem vê um filme o que está a acontecer a sua volta, e reage de uma forma atuante, consciente e lúcida, e não de uma forma primária.

Exatamente. Vamos trazer isso para a realidade de um casal, de um casamento, enfim, qualquer relacionamento afetivo. Num casal, ambos sabem exatamente qual é a fisionomia, qual é o tom de voz e qual é a frase que irrita o outro. Sabem perfeitamente, pois vivem juntos. Estão tão próximos. E num conflito, de casal, se este disse aquela palavra ou fez aquela cara, o outro sabe exatamente qual é a fisionomia, qual é o tom de voz e qual é a palavra que vai agradá-lo, que vai atenuar aquela situação. Mas por que não diz? Porque eu não vou me dobrar, não vou ceder, senão o outro pisa em mim.

Aí depende da sua atitude, ao dar essa palavra, interromper o conflito conjugal que vai surgir ali e depois estabelecer limites. E se essa relação pode ser mantida, ela vai ser mantida com respeito, com consideração, com carinho, com companheirismo. Se não puder ser mantida, é uma pena. Porque toda relação que se rompe tem um custo emocional muito caro, um custo sobre a saúde muito alto. Mas, paciência. Há um momento mágico em que as relações precisam mesmo terminar, porque aí terminam como amigos. E se ultrapassar o momento mágico, e as pessoas insistirem que tem que permanecer juntas, aí talvez na hora em que romperem, rompam como inimigos, com ressentimentos.

Então, às vezes é apenas a questão de hoje eu cedo e amanhã essa outra pessoa vai ceder. Porque há uma reciprocidade natural dos seres humanos, quando você tem uma atitude cavalheiresca, uma atitude fidalga com relação a uma pessoa, mesmo que íntima, mesmo que seja um irmão, mesmo que seja um cônjuge, a tendência é que a outra pessoa reaja de uma forma semelhante numa circunstância imediata ou futura. Uma vez, eu estava sendo conduzido num veículo, o meu amigo estava conduzindo e conduzia muito mal. E fez uma conversão péssima e o outro motorista quase bateu no carro dele, botou a cabeça para fora e já ia dizer uns impropérios. E esse meu amigo abriu um sorriso para ele, como quem diz: desculpe, eu errei. Mas com um sorriso, muito simpático. O outro motorista botou a cabeça para dentro e disse: vai, meu filho, vai! E não deu briga. O que evitou a briga? Foi só um sorriso.

A importância do indivíduo mais consciente, mais lúcido, mais atuante a todos os níveis. É isso que a Sua Cultura quer a relançar dentro da sociedade?

Precisamente. Porque a tendência é colocar um rótulo nessa Cultura, e eu prefiro chamar de Nossa Cultura ou Nosso Sistema, Nossa Filosofia, evitando colocar rotulo; o Nosso Método, evitando o rótulo. Por quê? Porque na hora em que as pessoas colocam rótulos, elas engessam a coisa. E aí começam todas as intolerâncias, até com relação a quem está fora. E uma das confusões que eu procuro corrigir, uma das visões distorcidas, é que a pessoa pratique o Método dentro da sala de aula na qual ela aprende o Método. Só que ali é para aprender, não é para praticar. Não é para pôr em pratica. Por exemplo, se dentro de uma sala de classe, nós ensinamos a respirar corretamente, na hora em que a pessoa sai por aquela porta e vai embora, ela não há de sair respirando errado. Então não adiantou nada. Então, ela aprendeu a respirar certo aqui dentro, agora ela sai respirando certo e vai caminhando respirando certo até o seu carro, senta-se e vai conduzindo o carro, respirando corretamente. Chega no seu escritório e vai trabalhar, ou chega no seu ginásio e vai fazer esporte, respirando corretamente. Vai respirar corretamente, de forma mais produtiva, sempre, porque foi isso que ele aprendeu aqui. Eu usei respiração, podia usar qualquer outra técnica para exemplificar. Esse conjunto de técnicas e conceitos que ele aprende na nossa instituição, ele sai e deve aplicar, como você disse, em todas as situações da vida. Como nós tentamos explicar, tentamos expor. Que ele vai transmitir isso, ele vai irradiar isso, para toda a sociedade, porque ele vai irradiar pra família, ele vai irradiar para os amigos, ele vai irradiar para os seus colegas de trabalho. Então aquilo vai criando ondas de choque e, aquilo ali vai contagiando de uma forma positiva, todas as pessoas que travam contato com o nosso praticante.

Se o Carl Sagan dizia que a sociedade corrompe o indivíduo, esse efeito impregnador também pode funcionar, e deve, e o senhor pretende que funcione em sentido contrário?

Nós sabemos que funciona de lá pra cá. Façamos funcionar então, também, daqui pra lá.

Se o senhor escrevesse agora não o “Eu me lembro”, mas o “Eu sonho”, que sonho é que se escreveria?

Na verdade, do “Eu me lembro” eu não conseguiria acrescentar mais nada, porque aquele livro me saiu numa arrancada só. Às sete da noite eu comecei a escrever. Às sete da manhã, eu disse: vou descansar um pouquinho. E pronto, estava terminado. Não consegui acrescentar nem uma linha.

E o “Eu sonho”, o que é que tinha lá dentro?

Ali, não sei. Ali tem muita coisa! Tem muita coisa!

Podemos pegar-lhe por uma ponta, por um pé?

Que eu espero um dia poder expressar.

Mas vê com certeza. Nós sonhamos que os nossos filhos cresçam num mundo numa determinada direção. E nós configuramos qual é essa direção. O senhor não “hipotecou”, não investiu 50 anos de investigação, de procura de saberes, sem sentir dentro de si onde é que queria chegar? Onde é que quer chegar?

Eu gostaria de chegar a um ponto em que as pessoas, minimamente, escutassem o que nos temos a dizer. Que nos permitissem falar. Que não nos amordaçassem. Porque o grande problema que eu tenho sentido, é que nós temos coisas muito boas para dizer, não propondo um debate, mas propondo uma reflexão. O que ocorre é que os que não gostam do sistema, ou pensam que não gostam, não escutaram. Eles não conversaram comigo, não conversaram conosco, não conheceram a nossa gente, não leram nossos livros. Então, essa mordaça, eu gostaria, o meu sonho, seria poder arrancar essa mordaça. E eu me sinto sob aquela punição antiga, punição eclesiástica, do silêncio obsequioso. “Disse o que não devia, não falará mais.” E realmente eu sinto muito isso. Não querem que eu fale. Mas você observa que o que eu falo não é polêmico. Não considero polêmico, porque nós não estamos polemizando, nós não estamos discordando dos outros. Não é agressivo, acho que não é, não tenho intenção de que seja. Não quero agredir ninguém. E a proposta é boa, a proposta é uma juventude saudável. Nós trabalhamos essencialmente com adultos jovens. Portanto, produzir uma juventude saudável, juventude longe das drogas, do álcool e do fumo, se mais nada prestasse, pelo menos isso seria uma contribuição a ser reconhecida, que o nosso trabalho já está há meio século proporcionando à sociedade.

Para nós que de fora visitamos a Sua Cultura, vamos fazer um exercício de flash. A sua visão ou a sua missão aponta pra onde? Onde é que é o horizonte que configura para esta sua passagem pela vida?

Eu tenho conhecido gente muito interessante, realmente exemplos de seres humanos. Pessoas com quem eu tenho o privilégio de conviver. Algumas há mais de 30 anos, outras há mais de 20 anos, outras que eu estou conhecendo agora, como é o seu caso, e que pra mim constitui um privilégio. Essa profissão nossa, esse nosso ideal, nos permite isso: conhecer pessoas. Nós não somos head hunters, nós somos heart hunters.

Obrigado!

 


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